Debruço-me sobre um assunto do qual não tenho como fugir, embora extremamente chocante, delicado, mas ao mesmo tempo importante: a fome. Após alguns anos, constatamos pratos de comida vazios, jogados à própria sorte, sabe-se lá qual será.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), diga-se, totalmente independente e alheio ao jogo político que hoje divide a nação, divulgou, na última semana, o aumento da pobreza e da fome no Brasil.
Não estou aqui falando de pessoas que estão a passar dificuldades, mas daquelas que agora se encontram sem um lar, um abrigo, um prato de comida. Se antes tínhamos a preocupação com o fim da fome, este parece ser, agora, um problema menos importante diante do discurso central e antidemocrático que parece prosperar.
O Brasil deveria ser exemplo para o mundo. Temos o maior e mais eficiente programa de vacinação sobre o globo, toleramos pacificamente todas as manifestações culturais e religiosas, adotamos a linha da garantia dos direitos resguardados na Carta Constitucional.
O País, pós-pandemia, deveria servir de exemplo ao resto do planeta. Contrariamente, afunda-se em um abismo cavado com as próprias mãos. Resultado de tudo isso, basta olhar os gráficos daqui em comparação com o restante do mundo. Cai a bolsa, aumenta o dólar, fogem os investimentos, o Brasil retrocede.
Resultado da falta de desenho de capacidade, cujo olhar foge aos reclames mais urgentes, é o aumento da pobreza. Pessoas, muitas das quais não terão a oportunidade de ler este artigo, motivos sejam eles quais forem, estarão aqui representadas. Decerto, muito mais que nas entrelinhas, mas como todas as palavras, é preciso dizer que é preciso resistir.
Esta semana passei por um ponto da região central de São Luís – a fim de resguardar o anonimato daqueles que sob a marquise se encontravam, guardarei a localização –. Um misto de sentimentos tomou conta de mim: pena, solidariedade, consternação, crítica, revolta.
Do alto da minha longa jornada como servidor publico, já tendo logrado êxito em vários concursos e há décadas exercer o ofício da magistratura, confesso que o abandono, o descaso social, a fome, são coisas que ainda me chocam.
Ao passo que me sinto preenchido por me tocar, o que mostra que ainda possuo algo de humanidade em mim, sinto, ao mesmo tempo, uma sensação de indignação e impotência diante tão sério problema social que hoje afeta a nação e sua autoestima para trilhar os próximos passos.
Muito além das páginas do noticiário, a fome chegou, com peso, como um prato-feito, à mesa dos brasileiros. Estão nas esquinas, nas portas de padarias, dos mercados, nos semáforos, debruçados sobre depósitos de lixo.
Quase 600 mil já se foram por conta da Covid-19, enquanto a riqueza aumenta entre os poucos brasileiros e a pobreza extrema só aumenta entre a maioria deles. Entre 2017 e 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que 36,7% dos lares brasileiros, cerca de 85 milhões de pessoas, tinham dificuldade para adquirir comida. De cerca de 10 milhões de nacionais a fome era companhia rotineira.
Em 2021, sem o benefício do governo federal, a taxa de pobreza teria chegado a mais de 30% da nação. Somado a esse contexto, juros mais altos, inflação galopante, combustível nas alturas e a cesta básica que não cabe no orçamento mensal.
Não é apenas fruto dos efeitos da pandemia. Vários países do mundo já se recuperam e dão sinais de que o povo está acima de quaisquer interesses. O Brasil, ainda capenga com suas muletas, busca entre devaneios sórdidos, o que de fato é sua real prioridade.
Sofrem nossos idosos, que resistiram fortemente à pandemia; sofrem os nordestinos, cujas perdas superam as outras regiões do Brasil; perdem as mulheres, que cuidam dos filhos e tiveram perda de 10,35% da renda. O rendimento médio dos trabalhadores baixou 6,6% neste ano de 2021, comparando-se com ano anterior.
Mais que números, são brasileiros e brasileiras que foram “jogados” às ruas. Viram, em uma marquise ou um viaduto, o único espaço escuro e inóspito que paradoxalmente serviria como a melhor guarida para acomodar a família dos intempéries mundanos.
Betinho, sociólogo cunhou a célebre frase: quem tem fome tem pressa. Mas parece que os anos insistem em querer apagar essa ânsia, a vontade de querer saciar sua vontade de frente a um jogo perverso.
A vida real parece estar permanentemente sobre o tabuleiro, como um jogo descompromissado de perder e ganhar, de disputas acerca de quem fala mais alto ou mais grosso. Enquanto alguns parecem querer firmar posição, como se esta fosse condição para sua virilidade máscula, milhões de brasileiros sofrem com o abandono, o descaso, a fome.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras