Os dias de quarentena em razão do novo Coronavírus tem alterado substancialmente a vida de bilhões de pessoas em todo o mundo. Dentre as atividades as quais me dedico durante o isolamento, além do trabalho remoto, a leitura e a reflexão tem sido as mais exercitadas.
Muito se fala em pregar a união para promoção de ações conjuntas, embora ainda existam aqueles que têm dado maus exemplos. O isolamento foi visto como mecanismo de inibição da propagação da doença, mas revelou o grau de dependência que temos uns dos outros.
A frenética rotina diária nos passa a falsa sensação de que somos autossuficientes em nossas necessidades. Uma concepção que construímos culturalmente, repassada de geração em geração.
Crescemos, completamos 18 anos, arrumamos trabalho, formamos, saímos de casa e conquistamos nossa “independência”. Esse é o roteiro seguido por milhões de pessoas todos os anos, em diversas nações sobre o globo.
Acordo cedo, começo a labuta diária, completo as semanas e ao fim do mês recebo meu salário a duras penas conquistado. Nada poderia refletir melhor o conceito de independência, não é mesmo?
Se preciso de um atendimento médico, busco um pronto socorro; preciso realizar uma obra, então compro os itens necessários e mando executar o projeto; necessito de um alimento, desloco-me até um comércio para adquiri-lo.
Acordo sempre cedo e ao sair para comprar meu pão, deparo-me com a grama do jardim devidamente aparada e as plantas e flores bem cuidadas; vou até a caixa de cartas e recolho as correspondências. Tudo normal.
Sigo até a garagem e pego meu carro, sempre limpinho e bem cuidado. Ao me deslocar para o trabalho, verifico o baixo nível de combustível. Ora, dinheiro não é problema, pois trabalho e sou autossuficiente. Lanço a mão no bolso e retiro algumas notas. Encha o tanque!
Inicia uma movimentação estranha do frentista com dois homens, mas rapidamente chega uma viatura. Ao que percebi, acabaram de evitar um assalto. Tudo normal. Passado o susto, dirijo-me para o trabalho e completo minha pesada jornada. Passo no mercado e compro uma cervejinha. Ah, ninguém é de ferro e afinal, eu mereço!
Ao chegar em casa, percebo que a mesma está devidamente arrumada, um tanto diferente do que deixei. Na cozinha, certifico-me de que a comida, ainda aquecida, fora preparada como solicitei. Ao guardar aquela cerveja, vejo um recado da minha diarista, preso em um imã de geladeira, que me pôs a refletir sobre tudo que me cerca.
“Espero que tenha tido um excelente dia. Mas imaginando que não tenha sido nada fácil, preparei com carinho o seu prato favorito. A papelada que estava espalhada na sala, deixei devidamente organizada no escritório, ao lado do computador. Tenha um bom descanso!”
O roteiro acima ilustra uma rotina que se repete na vida de muitos cidadãos. Afinal, sofreram, lutaram, enfrentaram dificuldades para vencer. Natural que fortaleçam a crença de autossuficiência a partir do que construíram. Tanto é verdade, que é comum ouvirmos expressões do tipo: eu trabalho e não dependo de ninguém.
Mas o momento pelo qual passamos mostra como é essencial o papel do outro sobre minha vida. A certeza do “posso tudo” e não dependo de outrem, porque trabalho, pago minhas contas e vivo do meu suor, caiu por terra diante do caos trazido pela Covid-19.
Os capítulos escritos pela atual crise confirmam, dia após dia, o quanto somos dependentes uns dos outros. São milhões de profissionais cujos ofícios impactam diretamente na vida de um sem número de outros cidadãos e, consequentemente, no funcionamento da nação.
Quantas não são as pessoas que agem a nossa volta facilitando o nossa rotina? O porteiro do condomínio, o entregador, o carteiro, o lavador de carro, o atendente, o frentista do posto, o borracheiro, os agentes de segurança, o médico, o pedreiro, o gari, o jardineiro, o caminhoneiro, o motorista, a diarista.
A verdade é que ninguém é autossuficiente. Existe um mundo além de mim – de você e de todos nós –, feito por pessoas que transformam a vida em uma cadeia de interdependência muito bem arquitetada para que as necessidades individuais sejam atendidas. Se uma peça falha, todo o mecanismo sofre as consequências.
Isso nos mostra o quão insuficientes somos. Cada peça, por mais aparentemente simples que seja seu ofício, é fundamental para o funcionamento da engrenagem da vida. Fica aí uma importante lição: existo pelo outro e ele por mim.
E o mundo que nos aguarda mais adiante tenha mais generosidade, solidariedade, compaixão e reconhecimento por todos aqueles que cooperam para tornar o mundo um lugar melhor para se viver e conviver.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras