Quando criança, aprendi que o ser humano era diferenciado dos demais animais em razão de sua sapiência, da capacidade peculiar de utilizar a massa encefálica para aplicar em prol de sua sobrevivência. Na escola, ensinaram-me que somos os únicos dotados de razão, emoção e inteligência, o que nos coloca em uma posição superior no reino animal.
Mas tomo emprestado de minha espécie essa tal inteligência para aprofundar em uma inquietação que há tempos corrói um grande vazio existencial, por oportuno, ainda carrego.
Somos a única espécie que estabelece uma disputa material sem igual, apenas para poder alimentar o ego e a vaidade. Ninguém, ou melhor, nenhum outro ser, é capaz de subjugar gratuitamente sua espécie tanto quanto nós. Colocamos cada um em seu devido lugar nas mais diversas relações de trocas sociais, a fila de embarque no aeroporto que o diga.
Mudamos por completo uma expressão secular, dita por respeitado filósofo, para implantar a ditadura do “tenho, logo existo”. E quanto mais tenho, quanto mais distinto é aquilo que tenho, mais exclusivo sou, mas importante sou. Mesmo que apenas em meu profundo vazio existencial.
Renegamos irmãos, colocamos aqueles que cuidaram de nós por toda a infância em asilos, viramos as costas e deixamos esquecidas à própria sorte em orfanatos crianças que precisam de um lar e preferimos adotar amorosos pets comprados e tratados a peso de ouro. Nada contra os pets, que naturalmente fazem parte de nossa cultura.
Mas tal qual o poema de Manuel Bandeira, ao retratar a decadência da espécie humana tendo como única culpada ela própria: “…o bicho não era gato, não era rato. O bicho, meu Deus, era um homem”.
Mas como entender que simplesmente deixamos nossos comuns morrerem de fome, enquanto nos deliciamos no banquete da ostentação? Muito se fala em mudar o mundo, salvar o mundo, evitar catástrofes, quando na verdade todo o problema está em nós mesmos.
Furamos a fila, brigamos por ideologias, agredimos sob a justificativa de amor ao clube do coração. O trânsito vira um ring. Estacionamos em local proibido, avançamos sinal vermelho, fazemos gestos obscenos, jogamos o carro sobre os outros, não damos passagem, que vença o mais forte. A tecnologia que deveria servir ao nosso conforto, vira uma arma sobre rodas.
Somos os únicos seres capazes de tirar a vida de nosso comum por questões banais, muitas vezes de forma premeditada, com total uso da nossa capacidade cognitiva.
Passado o tempo desde a tenra idade escolar, volto a me questionar sobre o que de fato é ser humano. Repouso-me a refletir sobre como podemos ser tão bons e ruins ao mesmo tempo baseados apenas em uma limitada visão que nos encapsula em um mundo de egoísmos, em uma retórica narrada sempre em primeira pessoa.
Maus por natureza? Talvez. Mas igualmente bons por essência. Ser humano é ser complexo e paradoxal em tudo que faz. Também temos a capacidade de repartir o pão. Agir para o bem comum, em um cenário tão turvo, é uma característica que ainda cultivamos, pelo menos alguns de nós. Por essa razão, quero me ater a uma situação presenciada por mim na semana que passou.
Aguardava um amigo em certo ponto da cidade quando avistei, do outro lado da via, um homem empurrando motocicleta, acompanhado de uma pequenina, que logo imaginei fosse sua filha. Ele acenava para os carros e sua aparência era de uma pessoa exausta. Em dado momento, um carro parou – um jovem de cor parda na direção –, a conversa se desenrolou ali mesmo. O carro saiu e lá ficou o homem sentado no meio fio.
Minutos depois, eis que retorna o carro. Chegou o combustível que aquele homem tanto queria para poder seguir viagem. Só aquele gesto já seria digno de reverência. O carro saiu em direção a um shopping e o homem e sua pequenina lá permaneceram. Aquilo me intrigou. Se o socorro já havia chegado, porque permanecia ali. Estaria a aplicar golpes na beira da avenida?
Mais alguns instantes, eis que surge aquele jovem com algumas sacolas em suas mãos, pelo menos umas oito – uma conta aproximada que arrisquei fazer. O motociclista se levanta com sua menina, o jovem vai em direção a eles e entrega as compras que acabara de fazer, imagino que no supermercado do aludido shopping. Conversas, sorrisos, apertos de mãos e um abraço selou a despedida daquele inusitado encontro.
O jovem regressou ao centro comercial, enquanto o motociclista, com aparente felicidade, arrumava sua pequena na garupa da moto para seguir sua viagem. Não tenho dúvidas do enorme bem que ali foi realizado a quem talvez sequer tivesse o que comer. Cheguei à conclusão que de um extremo ao outro somos capazes de tudo, para o bem ou para o mau.
Ali, estendendo a mão ao outro, estava o mesmo ser humano que poderia simplesmente ignorar aquela situação e seguir seu curso. Poderia ser mais um ser humano que deixa aflorar o lado mais sombrio a cometer atrocidades contra seu comum, tal como casos que já relatei aqui em alguns escritos. Mas não.
Naquele contexto, pude ver o ser humano na sua essência, com as qualidades mais nobres. Descobri um ser fascinante que me fez voltar a ser criança, a ter fé em nossa espécie. Um ser de luz, de paz, de alegria, de generosidade, de solidariedade, de amor, um ser humano.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.