Encerramos o mês de outubro em que foram vistas milhares de manifestações país afora sobre a consciência negra e tudo aquilo que o negro representou no desenvolvimento de nossa sociedade. Nada escrevi para o aludido período. Coloquei-me como espectador e apenas refleti acerca dos acontecimentos.
Com a força do impulsionamento via redes sociais, foi possível constatar o crescimento e a participação de pessoas em todo país abordando a temática. A imprensa também deu ampla cobertura aos mais diversos eventos e debateu com pesquisadores e especialistas a posição do negro na formação da identidade nacional.
Ouvi programas de rádio, fiz leituras diversas de artigos sobre o assunto, assisti apresentações culturais, debati com amigos esse importante tema que cabe a todos nós mais reflexão. Cabe-me aclarar que essa questão racial é algo que senti, literalmente na pele, desde muito cedo, fato agravado pela condição socioeconômica em que vivia.
Ao olhar para trás, para toda nossa história ao longo de mais de quinhentos anos não resta dúvida da enorme contribuição africana para a formação da sociedade brasileira, fato! Embora muito já se tenha dito e falado da antropologia e da sociologia trazida pela clássica obra “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, é preciso que reflitamos sobre outros aspectos que persistem em manter certo distanciamento entre comuns em razão exclusivamente da cor.
Embora tenha vivido entre os séculos XIX e XX, percebe-se a forte inclinação de sua obra para uma análise da formação da sociedade brasileira desde os primórdios, passando pela questão indígena e escravista. Destaca mitos sobre a inferioridade do negro, expõe uma sociedade patriarcal, o domínio do homem sobre a mulher em diversos aspectos, sobretudo sexual. Mas toda essa indiferença e submissão eram ainda maiores quando envolvia a questão racial.
Ao olhar para o passado – seja pelos escritos de Freyre ou por tantas outras janelas que expõem nossa história – e comparar com o nosso presente, é natural que se constate mudanças e avanços conquistados. Mas não se pode desconsiderar o racismo e a discriminação que persistem nas mais diferentes formas de interação social como uma herança que teima em se manifestar com muita naturalidade.
A retórica que assisti durante todo mês de outubro soou como uma sinfonia quase perfeita, não fosse a trágica realidade com a qual ainda nos deparamos cotidianamente. O negro continua a ser massacrado, subjugado, nos moldes de uma escravização às avessas, mascarado pela cortina de uma hipocrisia tão ardil, que ela própria chega a ser demagógica.
Não vamos avançar no tema igualdade sem que realmente mudemos algo no comportamento da sociedade, razão pela qual devemos começar pelos mecanismos que possuem a capacidade de promover essa mudança esperada. Um dos caminhos é a educação, pedra basilar de uma nação.
Mas destaco outra forma de influenciar a sociedade e ditar comportamentos, que é a atuação dos veículos de comunicação, por meio de seus programas de entretenimento. Em que pese o importante papel da imprensa na promoção dos debates, há necessidade de mais engajamento de todas as vias comunicativas na promoção da igualdade.
Embora se lute com todas as forças pela promoção de igualdade entre negros e brancos, na telinha o negro ainda é colocado em um patamar inferior. Como esperar que nossas crianças mudem a forma de ver o mundo assistindo a programas nos quais aos negros são reservados espaços de bandido, mordomo, gari, doméstica, babá, segurança de shopping e outros papéis secundários que reproduzem uma cultura de segregação?
Salvaguardando as produções de época, não há motivos plausíveis para o negro ocupar apenas o espaço que lhe impõe posição de inferioridade e o subjuga tal como o fazia a sociedade do Brasil colônia.
O negro foi escravizado sim, por um cruel sistema político e econômico, mas se libertou, virou escritor, se tornou político, empreendeu. Hoje temos negros ocupando importantes espaços e desempenhando com o mesmo primor atividades afeitas a todas as profissões. Progredimos nos direitos, mas me recuso a aceitar a ideia que evoluímos, pois nunca estivemos atrás, tampouco à frente, na escala evolutiva humana. Somos iguais.
É um tema que quanto mais me proponho e insisto em discutir, mas me embrulha o estômago, dada a minha pouca compreensão do porque ainda colocamos tal assunto na mesa dos debates diários. Mas é preciso ter coragem e fazer esse enfrentamento, sempre primando pelo equilíbrio, pela moderação e pelo respeito que deve nos unir.
Já passou a hora de dar um basta nessas produções audiovisuais que apenas fortalecem, disseminam e reproduzem a cultura da diferenciação entre o negro e os outros. O estereótipo da submissão, da inferioridade, da subcultura, que só nos empurra ladeira social abaixo precisa ser rompido.
Capacidade não se mede por quaisquer características genotípicas ou fenotípicas, portanto não compelindo ninguém a perecer em razão da aparência, que como já dizia o bom e velho ditado, elas enganam. Muito além disso, características físicas nada dizem da nossa capacidade de realização.
O negro não tem lugar cativo, nem o quer. Não é detentor e nem mais merecedor de qualquer espaço que não possa ser também ocupado pelo branco. Os espaços são de todos. É preciso romper com o atraso social que coloca como uma difícil barreira no progresso civilizatório e para se aspirar uma sociedade minimamente desenvolvida. Os veículos de comunicação têm enorme desafio nessa empreitada. Comecemos!
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.