Neste breve rascunho quero prestar solidariedade às dezenas, centenas, milhares de famílias vítimas da violência policial em todo Brasil. Mas muito mais que uma eventual ação desastrosa, o episódio recente da Comunidade do Jacarezinho escancarou uma face que muitos não conseguem dimensionar.
Antes de sentar na cadeira de magistrado, fui membro das forças de segurança, especificamente a respeitada Polícia Civil do Maranhão. Nos vários papéis que assumi, ora lá, ora cá, pude colher boas experiências e posso afirmar: o gatilho de um policial em operação, quando puxado, a responsabilidade precisa e deve ser compartilhada, no mínimo, com todo um legado histórico.
Resumir-se a criticar sem compreender a dimensão que há por trás da estafante rotina é incorrer em uma atitude açodada e ingênua. São muitas variantes a serem consideradas em uma análise minimalista, mas me arrisco a trazer algumas para reflexão.
O exemplo da operação no Jacarezinho nos serve como provocação às nossas mentes, capaz de nos permitir uma análise mais atenta da realidade que nos cerca. Quem sabe, daí, surjam atitudes, comportamentos, que possibilitem conclusões mais assertivas, que nos direcione para novos caminhos. Afinal, ao cabo de tudo, o que queremos enquanto sociedade, é a paz social.
Torna-se imperioso compreender como muitas dessas comunidades se formam, notadamente aquelas do Rio de Janeiro, a realidade retratada, por exemplo, nas página de O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Ali, creio que com toda sapiência, o escritor tenha tido a intenção de deixar para as gerações futuras um retrato do contexto social advindo com a abolição da escravatura, cuja data, diga-se, fora comemorada na semana vindoura.
É sabido que toda a massa de ex-escravos, sem leitura, ofício ou posses foi jogada às margens da sociedade. Juntaram-se em amontoados de barracos, guetos sem quaisquer condições sanitárias para uma vida digna. Na tentativa de transformação da cidade aos moldes da Paris, francesa, na pior versão da belle époque, muitos desses aglomerados foram expulsos das regiões centrais, vindo a ocupar os morros e favelas em áreas marginais. Invisíveis aos olhos do Estado! Mas até quando?
Ao longo de décadas essas comunidades se reinventaram, conheceram o poder dos laços entre vizinhos, da ajuda mútua, do fortalecimento de uma cultura de colaboração. Com sorriso no rosto e olhos de esperança, mesmo que afundados na miséria, encaravam a falta de assistência estatal, sofriam na pele a discriminação em razão da cor, classe, local de moradia. Os verbos podem ser trazidos para o presente, visto que tal quadro social persiste.
A história conta por si e nos ajuda a entender que, na ausência do Estado, havia espaços para a tranquila atuação de grupos que estruturaram o seu modus operandi paralelo ao poder oficial e, quando este acordou, a situação já se encontrava em total descompasso. Como tentativa de conter crimes e contravenções ali praticados, optou pelo enfrentamento, em detrimento da devida assistência garantidora de direitos e do cumprimento de deveres. Cidadãos de bens passaram a vítimas e reféns de uma guerra que parece não ter fim.
Quando digo que o gatilho não se puxa só, falo de todo o contexto, causas e consequências, que levam o policial a agir de forma tão letal no Brasil, especialmente nos grandes centros urbanos. O nosso modelo de combate ao crime está sustentado apenas no enfrentamento bélico, relegando-se por completo políticas sociais essenciais para a transformação positiva dessas comunidades, como saúde, educação, cultura, lazer, esporte, geração de emprego e renda.
O único braço do Estado que o cidadão de uma comunidade conhece é aquele que puxa o gatilho. Nessa guerra, temos outra vítima, que por vezes é tida como vilã, devido sua atuação de enfrentamento: a polícia.
Mas como disse e repito, o peso sobre o gatilho não é de um único dedo, mas de uma política equivocada, calcada no exemplo das parcas declarações de guera do último governante do Estado do Rio, ora impedido. O policial, desde a academia, é treinado para o combate, daí porque características físicas são condições básicas no processo de aprovação e formação.
Vencida a etapa de formação, se deparam com uma realidade na qual são jogados como a solução para o fim quadro de barbárie, sem saber que, logo, serão eles, também, vítimas de uma dura e complexa realidade. Falta estrutura para execução do trabalho bem feito, os salários são baixos, o risco da profissão alto e permanente, o conjunto de normas precisa de urgente revisão.
Diante de todo esse caótico quadro, obedecem a um forte regime hierárquico e são chamados a atuar de forma reativa. Historicamente o Estado falhou, mas os rumos ainda podem ser corrigidos. O que não se pode, ao modelo visto em outras partes do mundo, é querer alcançar a paz social com ações de guerra.
A reforma do sistema de segurança pública é necessária e urgente, mas não mais que a reforma do Estado, a fim de que cumpra o seu efetivo papel republicano de promotor da paz e da ordem. Não por meios bélicos, mas mediante ações de promoção do ser humano em toda sua dimensão.
Que a operação do Jacarezinho sirva-nos, também, de reflexão sobre os caminhos que a nação brasileira tem tomado para resolver os impasses trazidos por políticas em descompasso com a realidade social. Antes que se eleve o tom de qualquer crítica, não quero aqui usar de retóricas ideológicas, não cabendo apontar culpados ou inocentes, certos ou errados. Deixo apenas a reflexão sobre para o caminho que estamos trilhando.
Creio que pelo menos uma coisa esteja certa diante de todos os mais recentes acontecimentos: mudar é preciso. No âmbito do Estado, toda reforma é bem-vinda e necessária de tempos e em tempos, mas ao que parece, hoje, a mais importante, necessária e urgente é a reforma da própria maquina estatal.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras