Mais um dia que amanhece, mais uma semana que se inicia, mais vítimas de balas perdidas. Entre elas, crianças em tenra idade e a inocência que lhe é peculiar e limitada para alcançar a compreensão de cenário de guerra urbana. Onde? Em todo lugar. Aqui, acolá, em quaisquer das regiões. O Brasil é hoje um dos países mais desafiadores para a juventude.
Como em uma permanente lei da selva, é difícil nascer, crescer e se manter em um país que mata quarenta, cinquenta, sessenta mil cidadãos todos os anos, em sua maioria jovens. Quando se é pobre, negro e morador daquela que se convencionou, glamourosamente, chamar de “comunidade” os desafios se multiplicam.
Embora a violência alcance milhares e de faixas etárias diversas, quero me ater aos acontecimentos das últimas semanas, notadamente na cidade do Rio de Janeiro, que hoje considero expoente máximo da violência nossa de cada dia. Enfrentamentos entre facções e destas com forças policiais deixam no meio do fogo cruzado a população e, de forma ainda mais indefesa, nossas crianças.
Quantos Ryans, Brunas, Joãos, Jéssicas os pais ainda terão que enterrar semana após semana? A última criança assassinada pelo descaso foi o jovem Leônidas da Silva, de 12 anos. Mais uma para a estatística dos esquecidos pelo Estado, mas tragicamente encontrados por projéteis que lhes arrancam o sopro da vida.
O desafio dele e da avó, naquela fatídica tarde de sexta-feira, 9 de outubro, era o que antes todos entendiam como algo comum. Uma simples e rotineira ida ao mercado, que cruzou com um destino cruel, uma cena trágica. Tiros, correria, queda, sangue, gritos, desespero, dor, silêncio!
Ali, jogado na calçada, Leônidas já ensaiava os últimos suspiros de um curta-metragem, cujo roteiro remonta um destino que poderia ter outros contornos. O ir, o vir e até mesmo o estar, tornaram-se deveras perigoso nas principais capitais do país. O espaço urbano parece ter se construído para vivermos em eterna vigilância.
De acordo com a plataforma Fogo Cruzado, somente este ano de 2020 a Região Metropolitana do Rio de Janeiro teve mais de 3,5 mil tiroteios. São quase dez enfrentamentos diários que deixaram em 2020, até o momento, o trágico saldo são 1.348 pessoas baleadas, 100 delas por balas perdidas, e 663 vidas ceifadas. Até o Dia das Crianças, último dia 12, pelos menos 20 pequeninos tinham sido vítimas dessa guerra.
Vítimas da violência, abandonadas pelo Estado, quando não são vítimas diretas das ações violentas, terminam por se tornar, elas próprias, protagonistas do caos urbano. Afinal, o bandido de hoje muito provavelmente foi a criança para a qual as oportunidades não chegaram. Saúde, esporte, lazer, cidadania, educação. Tudo, ou quase tudo, lhe foi furtado, notadamente a esperança e o direito a oportunidades.
Trocou a escola pela rua; a orientação dos pais pela de pessoas alheias ao seu bem estar; as folhas do caderno pelas folhas de embalar drogas; o lápis por entre os dedos por uma arma na cintura. Mas não foi uma simples escolha. A palavra trocou, não se encontra colocada como uma vontade própria, mas um estado alheio aos desejos pueris, que é de brincar, estudar e ter seus direitos respeitados.
Por essa razão se torna necessária a mudança de rumos. Crianças precisam ter seus direitos, tão bem esculpidos pelo legislador, assegurados. Brincar, estudar, viver, crescer, com proteção e cuidado. Apenas a plena execução das normas vai garantir que nossos pequeninos possam, concretamente, se tornarem futuro da nação.
Antes que venham aqui falar de “vitimismo”, antecipo que não é o propósito deste texto levantar tal debate. Não é o propósito adentrar na inócua discussão “as vítimas do sistema”, sobre a falta de oportunidades geradas pelo Estado. Se bem que, paradoxalmente, esta escassez é um produto cada vez mais à disposição da nossa sociedade. Aprendemos a sobreviver com aquilo que não temos.
Não posso, como filho de lavrador, nascido na roça, criado na periferia de São Luís, dizer que é impossível vencer a selva de pedra. Mas é extremamente duro. Depois de trabalhar como ambulante, flanelinha, ajudante de pedreiro e poder terminar os estudos, que sedimentaram uma sólida caminhada, não posso simplesmente crer na impossibilidade do sucesso.
Ainda assim, ouso afirmar que nosso sistema não assegura oportunidades iguais para todos. Parece vivermos, ainda, em uma espécie de seleção natural, construída propositalmente pelo homem, não se sabe ainda o real motivo. Se na teoria de Darwin as forças estranhas advinham da natureza, no jogo da violência urbana parece ser o próprio homem a criar seus mecanismos de escolhas.
Uma rápida reflexão sobre o que acontece no mundo, no nosso país, em nossa cidade, nos implica chegar à conclusão que não evoluímos o suficiente. Ainda somos bárbaros, por essência. Na esteira da violência urbana, em troca de vaidades mundanas e em detrimento do bem comum, matamos o presente e sepultamos nosso futuro.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.