Sou eu José, estou aqui, deitado, olhando para o velho “telhado” de palha que resiste à forte chuva, que avança noite adentro sem dar trégua. É a primeira depois de longo período de estiagem. Após um dia de afazeres, todos estão em seus humildes, mas aconchegantes aposentos. Amanhã é dia de luta, cedo estarei na lida, afinal, chuva é sinal de bonança. Já vislumbro, cheio de esperanças, a fartura de mais uma colheita.
Um incômodo e persistente gotejar aqui, outro acolá, mais um perto da cabeceira da cama. A orquestra, de uma harmonia matemática, rouba minha concentração, quebrando a reflexão que havia começado. Inquieto com a teimosa gota d’água, toco os pés no gélido chão de terra batida, acendo a lâmpada e ponho-me a reparar as brechas que convidavam os fios de água a uma jornada até despencar sobre algum utensílio da pequena casa de taipa.
Hora de retornar à cama. Na escuridão, deito-me em busca de aconchego e descanso. Mas as pupilas dilatadas em meio à escuridão, como se quisesse teimar em enxergar aquilo que os olhos não conseguem alcançar, mas que pode ser sentido e tocado com os sentimentos mais profundos.
Novamente me vêm os pensamentos carregados de expectativas, mas que ao mesmo tempo chocam com uma triste realidade que se repete ano após ano, safra após safra, em uma sequência quase tão harmoniosa quanto ao show que acabo de interromper da orquestra de gotas d’água.
Se por um lado a chuva traz a vida, que faz brotar a semente, por outro constato que esta será mais uma daquelas temporadas de abandono e sofrimento na vã tentativa de colher alguns frutos do seio da mãe natureza. Questiono-me: sem estradas, que a essa altura já devem estar intrafegáveis, como chegarei à minha roça, como chegarei ao meu destino?
Enquanto preparo as ferramentas para a lida, os filhos, entusiasmados com o reinício das aulas, comem um bolo de tapioca preparado no fogão à lenha com um pouco de café preto.
Coloco os pés na trilha, sigo a pé, pois de bicicleta é quase impossível trafegar. Certa altura, encontro conterrâneos, depois mais outros e formamos o grupo que vai preparar o solo para o novo plantio. Macaxeira, mandioca, milho, quiabo, maxixe, feijão. A terra é boa e se planta de tudo um pouco, para se colher um pouco de tudo.
A chuva ainda cai, pouco mais devagar que a noite anterior. Os poucos raios de sol enfraquecidos, avisam que o crepúsculo se aproxima e está na hora de regressar. O sorriso no rosto revela que este foi um bom dia para todos. Acho que a temporada promete!
Mas ao voltar para casa, vejo rostos entristecidos. Sento-me no velho “tamburete” e chamo a mim os pequeninos. “Hoje não fomos para escola”, disse o mais velho. Antes que eu mudasse de humor e adotasse uma feição de reprovação, o mais novo, sem titubear completou: o carro não passou hoje, porque um pedaço da estrada foi levado pela água da chuva.
Se para mim, do alto da maturidade de uma vida acostumada ao trabalho já é difícil caminhar algumas centenas de metros até a roça para preparar a terra, como esperar que esses jovens ainda em tenra idade caminhem uma dezena de quilômetros para chegar até à sede ou povoado distante onde fica a escola? Como chegar lá?
Estamos ilhados. Sem estradas é como estar em uma pequena porção de terras no meio do oceano. A diferença é que lá as condições se dão pela força da natureza; aqui, as circunstâncias se formam pela omissão de quem gerencia os recursos do município e que deveria cuidar de sua gente.
Jogados à sorte, não se pode chegar a destino algum, não há estrada. Apenas resta estar, ficar, aguardar. Talvez sentado, que é como brinca meu compadre, que mora lá para as bandas da cidade grande, quando vem nos visitar.
A chuva volta a cair e as condições da estrada tendem a piorar ainda mais. A torcida agora é para não necessitar de assistência médica, pois como seria possível chegar ao destino em busca de tratamento? Emergência então, nem pensar. Ambulância é coisa que não chega aqui faz tempo.
Isolados, o que chega rápido mesmo é a notícia ruim. Soube que as estradas lá para fora também não estão lá essas coisas. Nosso município está intrafegável e quase sem alternativa de passagem para quem chega ou sai dele, já que possui um único acesso. Abismado, perguntei-me para onde foi todo aquele dinheiro de que havia chegado seis meses , um ano, dois anos antes.
Como em jogo de “gato e rato”, o dinheiro chegou, a estrada se foi. Coisa de gatuno? Uma máquina aqui, um operário acolá, uma “raspagem”, alguns remendos, outros buracos tapados. Pronto! O gasto do dinheiro fora justificado.
Ah! Até uma ponte de madeira recém-erguida, já ruiu com as primeiras enxurradas. Mas não deveria ser de concreto armado? Bom, o dinheiro que veio, soube pelo meu compadre que é peixe deles lá, era para pra fazer ponte de concreto mas todo ano é assim vem dinheiro para fazer bem feito e eles fazem só um arremedo com madeira e como disse o meu compadre , de madeira já usada em outras pontes que ruíram.
Posso parecer pedir demais, afinal já tenho minha casa, algumas galinhas, duas cabeças de porco e cinco linhas de roça. Mas isso não me basta. Quero chegar. Quero ir e vir, fazendo valer o direito que a Constituição nos garante de locomoção, de acesso a serviços públicos, de ter dignidade.
As chuvas avançam no mês, a lavoura brota, logo será momento da colheita. Um questionamento simples, sobre como escoar a produção, ainda persiste sem resposta. Entre um misto de alegrias e tristezas, os dissabores da vida se acumulam, mas vamos mantendo nossa fé, aquela que segura o camponês de pé.
Por ora, tenho apenas algumas poucas certezas. Uma delas é que o dinheiro veio, outras é que as estradas não foram feitas, a terceira é que meus pequeno não poderão ir a escola. Em pleno século XXI, em um cenário no qual já se consegue falar e ver ao mesmo tempo a outra pessoa para quem se telefona, estamos isolados. Tudo na palma da mão, tudo ao alcance, menos os serviços essenciais.
Destino? Apenas vou seguindo, querendo chegar em algum.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras