Mas que decote inapropriado! Convenhamos, uma mulher que se preze não deveria estar em um lugar daqueles àquela hora. Oh, mas quer o quê? Veja aquela saia, definitivamente não é adequada a uma moça de respeito! É nesse tom que nossa cultura machista, fundada em um patriarcalismo ultrapassado, vem cultivando o olhar e o pensamento sobre a mulher.
Façamos então uma pausa no clima de Copa do Mundo para refletir sobre um tema que nada tem para nos alegrar. No país do futebol ainda precisamos calçar nossas chuteiras e entrar em campo para vencer, de uma vez por todas, a violência contra a mulher e a sua face mais perversa: o feminicídio. Crime que coloca o Brasil em quinto lugar no ranking mundial, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Dizem que a sociedade avança com a evolução social dos seus cidadãos, mas no Brasil parece que ainda não atingimos esse elevado grau na escala de desenvolvimento. Na sociedade da informação, parece que os meios tecnológicos ainda não foram capazes de nos proporcionar uma formação mais cidadã e consciente dos direitos e deveres. No tocante à violência contra a mulher, o resultado disso é constatado nos números da violência que só aumentam a cada ano.
O lado ainda mais sombrio e que oculta os números reais diz respeito à grande quantidade de mulheres que ainda não despertaram a coragem para denunciar seu agressor. “Já cheguei a sair de casa pra fazer a denúncia e não fiz. Me sinto muito desprotegida, não tenho proteção de lado nenhum”, afirmou uma jovem que sofre com estupros constantes e que ainda está fora das estatísticas, ao conceder entrevista a um semanário de renomado canal de televisão.
Quanto ao feminicídio, esses dados são mais concretos e revelam uma triste escalada desse tipo de violência que mata pelo menos 12 mulheres no Brasil a cada dia. Somente em 2016 foram cerca de 4,5 mil casos de um crime que cresce a cada ano no país.
Recentemente um grupo de brasileiros envergonhou nosso país no exterior ao realizar o que segundo um deles foi apenas “uma brincadeira” com uma russa que nada entendia dessa tal forma de diversão à brasileira. Mas se me permitem, já somos envergonhados diariamente por nós mesmo em meio a um sem número de músicas de diversos gêneros cujas letras conferem à mulher uma posição social de submissão, de dependência, de objeto (na maioria das vezes sexual) a ser utilizado, descartado.
Levados pelo embalo contagiante e midiático do “senta, senta”, para ficar apenas nessa mais branda “reverência”, perdemos nosso senso crítico e passamos a achar tudo normal, reforçando uma cultura na qual deixamos de nos questionar sobre o tipo de sociedade que estamos edificando.
A face mais covarde dessa cultura de subjugação da mulher se reflete no feminicídio. Este ganhou especial atenção com o advento da Lei 13.104/2015, e o crime ganhou traços de uma conduta criminosa que tem em particular a mulher como vítima. Caracteriza-se pelo assassinato cruel com impossibilidade de defesa, torturas, mutilações e degradações do corpo e da memória.
A Lei 13.104, de 9 de março de 2015 alterou o art. 121 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
As motivações são as mais diversas, conforme pode ser verificado em depoimentos colhidos junto aos próprios agressores. “Até aprender a cozinhar eu aprendi, porque comida que prestava não saía da mão dela”, relata um algoz que desferiu 6 tiros em sua ex-mulher por causa de ciúmes. Na base do raciocínio (i)lógico do assassino está o sentimento de posse sobre a companheira. O desfecho trágico é precedido do controle sobre a vida da mulher, que não possui autonomia laboral, intelectual ou para o relacionamento social.
Em grande parte dos casos o que se vê é uma reprodução do ciclo familiar. Meu avô era assim, meu pai era assim, eu sou assim. Mas é preciso romper com esse ciclo de violência machista e covarde. A mulher precisa estar presente e exercer o protagonismo em todos os setores da sociedade. A igualdade perante a lei garante essa autonomia. Farão besteira, dirão uns. Não servem para liderar, bradarão outros. Mas o erro, a falha, o fracasso lhe convêm da mesma maneira que recai sobre nós, homens.
Isso porque a mulher nada mais é do que um ser humano, em todas as suas perfeições e imperfeições. Até nisso parecemos nos igualar, talvez com uma diferença: as mulheres estão mais propensas a assumirem seus “fracassos”, enquanto muitos de nós nos escondemos sob os mais diversos pretextos. Mais uma prova de nossa covardia machista.
Antes que levantem as mãos cheias de pedras, proponho pois que cada homem que lê este artigo faça um reexame de consciência e somente atire a primeira após confirmar jamais ter cometido um ato machista. Ah, mais foi apenas uma piada! Pensou um. Foi um fato isolado! Lembrou o outro. E assim seguimos com nossas imperfeições e incapacidade de reconhecer que precisamos mudar.
Enquanto não mudamos nossa forma de agir sobre as mulheres, enquanto não fundamos nossa relação com o outro na base do respeito ao sexo, cor, credo, religião, opção sexual, as autoridades precisam articular melhor os mecanismos de proteção à mulher. A rede precisa ser melhor estruturada e os atores públicos que nela atuam precisam de condições adequadas para o enfrentamento desse problema que assola a nação. Marielle Franco e tantas outras não podem ser esquecidas. Elas ainda estão presentes!
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís; Membro das Academias Ludovicense de Letras, Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.