Saravá! Por aqui aportei há pouco mais de quatrocentos anos, quase que por acaso, já que no início foi tudo a contragosto. Capturado em minhas próprias terras, expropriado das minhas vontades, na maior parte das vezes sob a cumplicidade de meus contemporâneos. Fui jogado nos sujos porões de grandes navios que, por dias a fio, cruzaram os mais bravos oceanos rumo a estas terras tupiniquins.
Por estas bandas, sem saber qualquer coordenada pela qual pudesse regressar, compeliram-me a uma jornada extenuante de forçados trabalhos. No início, confesso, não entendia bulhufas dos motivos que me colocavam de joelhos diante dessa situação. Astuto que sou, confesso logo estava tudo devidamente às claras que o escuro da minha pele era o motivo para todo aquele fuzuê.
Fui aqui jogado quando ainda nem era um país e ajudei a fazer desta a mais rica e destacada colônia portuguesa. Por séculos carreguei este país nas costas – literalmente sobre os ombros – como ainda o ajudo fazer. Desbravei matas, plantei, cultivei, colhi, produzi, extraí os recursos naturais e minerais, com nada fiquei. Nem um vintém de toda a riqueza que fiz com as mãos calejadas e com o suor que corria sob a escaldante jornada de um sol tropical.
Da força de trabalho do meu povo vi monumentos serem erguidos, estradas serem abertas, cidades serem edificadas, a aristocracia consolidar os sobrenomes de suas briosas famílias na história do Brasil, mesmo sem nunca terem pego no cabo de uma enxada. Nossos monumentos ainda resistem de pé, adornando centenas de cidades que estão no mapa do turismo histórico.
Mas as obras nas quais se vê beleza, abrigam também muito sofrimento. Não bastasse o banzo – que no fundo da alma ardia – convivíamos com a dor dos calabouços, das masmorras, dos mercados de escravos, das senzalas, dos açoites no tronco seguidos do banho em salmoura. Do pesado fardo que era o cepo carregado na cabeça, do viramundo e da máscara imposta àqueles que furtavam cana ou rapadura para sustento próprio. O castigo era acompanhado da humilhação pública. Servia de exemplo!
Ainda assim permaneci forte e me fiz presente. Aqui tive filhos, deixei herdeiros, até cheguei a ocupar posição de destaque em pleno período escravocrata. Mesmo que insistam em me esquecer, de fingirem que sou invisível, de me subjugar à posição secundária na teledramaturgia e no cinema – espaço em que raramente passo do papel de doméstica, porteiro, motorista ou bandido – quero dizer que resisto. Sou forte e estou mais presente do que nunca.
Após quase quinhentos anos de exploração, imprimi a minha marca nesta nação que hoje também é minha pátria. Estou vivo na culinária de pratos simples e sofisticados, na cachaça e no samba que marca a identidade nacional, enraizado na língua que particulariza a identidade dos brasileiros. Minha marca está impressa na forma de vestir, no gingado da capoeira, no molejo dos mais variados batuques.
Estou na música, no jeito simples de morar, na solidariedade com o próximo, na religiosidade, na arte, na cultura, na irreverência de viver uma vida simples e de superação, mas com a esperança e a alegria sempre estampada em um sorriso marcante e verdadeiro.
Ah, também estou na pele branca, parda, preta; no cabelo liso, crespo ou pixaim. Marco expressões nos rostos de olhos grandes, pequenos, puxados que combinam ou não com narizes redondos, afilados, grandes ou pequenos emoldurados por seja lá qual formato de cabeça for.
Axé! Sou do tambor de mina, do terecô, da umbanda e do candomblé. Faço parte do catolicismo, do protestantismo sou gente de fé. Frente aos desafios que a vida me impôs, minhas armas sempre foram a alegria, a fé e o berimbau, companhia que sempre me fazia viajar nas rodas de uma boa capoeira a esquecer a dor e o tormento da desventura cotidianeira.
Sou negro! Este sou eu e continuo sendo após mais de quatro séculos de expropriação da liberdade, mas jamais da minha honra e dignidade. Sou rocha, sou resistência, somos um só. Meu DNA está por deveras impregnado no seio desta nação que hoje se chama Brasil.
Ubuntu! Sempre foi assim. Essa é uma expressão que para cá trouxe na bagagem. Com ela quero afirmar que eu só existo porque nós existimos, que precisamos um do outro para a vida em sociedade – não o preto, o branco, o índio ou o pardo, mas todos nós enquanto nação.
Hoje, mais do que nunca essa expressão ecoa com um enorme sentido para todo povo brasileiro, cuja raça é apenas uma: a humana. Sua essência está no altruísmo como um modo de viver que devemos adotar cotidianamente quase que como um guia de comportamento social. Que os tempos de dor fiquem para trás, sem jamais serem esquecidos, e que possamos juntos e de mãos dadas continuar carregando com braços fortes a nossa nação.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.