Paro, penso, reflito… sinto saudades! Saudades de um tempo descompromissado, da distância dos problemas corriqueiros de uma vida que parecia longe de nos alcançar. A falta de comida, de uma roupa, ou mesmo a pouca perspectiva eram preocupações para os adultos.
Não que a escassez não maltratasse, claro que sim, afinal, a fome dói tanto quanto o chamado soco na boca do estômago. Mas éramos costumados e a aparente falta de insumos, não trazia tanta indignação, a propósito, com exceção da comida, não se pode sentir falta daquilo que nunca teve.
Mas ainda sobre sentir falta, posso dizer que hoje, ao me apanhar nas lembranças devaneias, mesmo diante de um conforto maior que a vida me trouxe, nada nos faltava de verdade. Paradoxal sensação me aperta o peito, dá um nó na garganta e me angustia de tal forma que minha compreensão não é capaz de alcançar.
Se por um lado alcancei algum bem material em minha trajetória, por outro percebo que muito do pouco que tinha já não está ao alcance, nem mesmo é capaz de comparar com as cifras disponíveis em algum saldo bancário. O que foi já não volta.
As lições do acordar cedo, sair para a lida, plantar, colher, caçar, pescar. O ritual da colheita e da quebra do babaçu, cuja polpa extraída foi moeda de troca que abastecia nossa pequena dispensa já não existe mais. A vida campesina, à beira dos alagados-campos e lagos, traz o sossego e a sintonia com a natureza que agora só alcanço com minhas memórias.
A natureza era sempre mãe, sempre oferecendo uma alternativa para a vida se reinventar. A pescaria era realizada de forma artesanal, na pequena canoa, no socó ou até mesmo à mão, quando vasta imensidão de água se transformava em pequenas e enlameadas poças.
O chão frio e batido, coberto com um teto de palha, contrastava com o entusiasmo de aprender e não tirava a alegria de ter a oportunidade de estudar a tabuada. Não tinha farda, não tinha merenda e o mesmo lápis se multiplicava em pequenos pedaços para vários alunos. Caderno, cartilha do abc, borracha, entre outros itens eram coisas das quais pouco se sabia.
Depois da aula a alegria corria solta. A bola, feita de restos de panos embalados em uma meia velha, sempre aguardava escondida na moita de capim atrás do gol. E lá estávamos a correr. O estômago podia estar vazio, mas o rosto transbordava de uma alegria sem igual.
Imaginação te faz ver a alegria em um pedaço de pau virava um taco, uma lata era um carrinho, uma corda amarrada em um galho balançava a adrenalina pulsante dentro do peito. A folha da bananeira virava um cavalo, que nos conduzia a até a beira de um riacho para os desafios de salto do alto de galho sobre as margens. Levávamos horas a fio nessas estripulias;
Sinto saudade daqueles brinquedos nada convencionais, hoje sequer poderiam ser classificados como instrumento de diversão. Não havia tempo para o sofrimento, a lamentação, a tristeza. Na roça, há pelo menos duas coisas que se aprende cedo: uma é trabalhar, a outra é inventar a própria infância.
O balanço da rede, muitas vezes furada, a abraçava e guarnecia da noite fria, por vezes até dois franzinos corpos, cansados da exaustão de um dia cheio de peripécias. Cama não havia, moveis tampouco e o remédio era aquele da sabedoria popular. Mas era difícil cair doente.
As viagens de canoa, casco e lacha de madeiras era uma atração a parte, ainda que aquelas pequenas, entre um povoado e outro, pegando o vento frio no rosto, que enxergava adiante, altivo, um mundo misterioso que à frente convidava para ser desvendado.
A saudade que dói e aperta, me traz a estranha sensação de que hoje aquela etapa de vida faz muito mais falta a mim, homem feito, do que a escassez fazia àquele frágil e franzino ser. A vida tem dessas peças, que nos pegam sorrateiramente.
Eis a constatação que podemos ter tudo na vida, que podemos conquistar alta posição, que podemos driblar situações, fingir para o outro, querer enganar o mundo. Só não podemos fugir de nós mesmos, de nossas memórias, que nos levam à particular profundeza de nosso âmago, lá onde dorme aquilo que aprendemos chamar de saudade.
Mas sem ela nada disso seria possível, nem mesmo alimentar a saudade. Minha mãe, dona Maria Gomes dos Santos, a senhora foi e aos seus 93 anos de vida continua sendo a mais fervorosa, combatente, altiva e digna mulher que a vida me proporcionou conhecer depois de ser gerado em seu próprio ventre. Parabéns MAMÃE.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras