No apagar das luzes de 2019 um projeto de lei sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro está gerando enorme debate no meio jurídico. Trata-se da instituição do juiz de garantias, aprovado juntamente com o chamado pacote anticrime, originário do Ministério da Justiça e Segurança Pública, comandado pelo ministro Sérgio Moro.
Fui incitado por alguns colegas a discorrer sobre o tema e decidir traçar algumas linhas sobre este assunto. Inicialmente ressalto que a medida trará mais impacto para o funcionamento do Judiciário do que propriamente para o cidadão, usuário dos serviços da Justiça e que, ao cabo do processo, está preocupado com o resultado justo, não importando as formalidades processuais, eis que o respeito aos seus direitos e garantias estão consagrados na Constituição Federal de 1.988.
É fato que a Lei 13.964/2019, de 24 de dezembro de 2019 traz inovações e mudanças importantes na esfera penal, notadamente no Código de Processo Penal. Mas é a figura do juiz de garantias, alteração no projeto proposta na Câmara dos Deputados, o ponto que está gerando calorosas discussões na esfera jurídica.
Buscando uma explicação mais pedagógica, pode-se entender o juiz de garantias como aquele responsável por conduzir os trabalhos iniciais em um processo criminal, da fase de investigação até a conclusão do inquérito policial. Sua atuação está intimamente ligada ao sistema constitucional garantista que norteia o Estado positivo brasileiro. Por essa razão, é visto positivamente por muitas alas sociais, uma vez que salvaguarda os direitos individuais no curso do inquérito com reflexos em todo processo penal.
Todas as prisões e as investigações iniciadas deverão passar por ele, que garantirá o seu andamento, requisitando provas, prorrogando prazos, autorizando procedimentos, inclusive o trancamento, quando da inexistência de justa causa para continuar. Terá ele o controle da legalidade dos atos praticados na fase investigatória, a exemplo das quebras de sigilos telefônico e dados telemáticos, realização de escutas, etc.
A finalidade parece ser dar mais agilidade aos inquéritos, que hoje são conduzidos pelo mesmo juiz, até o fim do processo, exceto onde já existem as centrais de inquéritos, como é o caso do Maranhão, que foi pioneiro nesse projeto. Assim, o juiz de garantias só deixará de atuar a partir da aceitação da denúncia ou da queixa-crime, momento em que os autos passam para a esfera de competência de outro magistrado, responsável pela instrução processual até a sentença.
Entidades de classe, especialistas e operadores do Direito se dividiram sobre o novel ordenamento. O ministro Dias Toffoli, presidente do STF e do CNJ, já se manifestou a favor da medida e instaurou uma comissão para avaliar a norma e buscar a sua operacionalização. A comissão deverá concluir os trabalhos já nesta semana, considerando que a norma passa a vigorar no próximo dia 23.
Toda essa urgência nos debates ocorre pela natureza das mudanças, que, por se tratar de legislação processual, passam a vigorar imediatamente. As alterações, em tese, são mais benéficas aos acusados, em razão das garantias trazidas às investigações, inclusive aquelas em curso. Diga-se, contemplando praticamente todos os ramos da Justiça: Federal, Estadual, Militar e Eleitoral.
Há os que reforçam que não haverá impacto significativo no Poder Judiciário. Mas convenhamos! Sou um entusiasta dessa medida, porém ressalto que é preciso ter cautela na sua adoção, dada à complexidade conjuntural existente hoje no Judiciário. Dimensões geográficas, recursos humanos e estrutura física devem ser considerados.
Outra crítica ao normativo se dá no que tange ao vacatio legis, ou vacância da lei, que em bom português diz respeito ao tempo em a lei existirá sem trazer qualquer efeito prático, haja vista não ser aplicada de pronto. Exemplo recente foi o novo Código de Processo Civil, publicado em março de 2015 e passando a vigorar somente um ano depois.
A razoabilidade deve ser discutida, uma vez que há reflexos diretos da lei no Sistema de Justiça, que precisará considerar esses efeitos e trabalhar para recepcioná-la, por ser de fundamental importância nos direitos e garantias individuais postos na Constituição Federal. Haverá dificuldade de operacionalização, por exemplo, em comarca de vara única, onde atua apenas um juiz, principalmente se considerar enormes distâncias entre comarcas em alguns Estados. Nesse ponto, entendo que, antes da aprovação da medida, deveria ter ocorrido um amplo debate com entidades de classe e operadores do Direito, assim como na elaboração do novo Código de Procedimentos.
Se já está difícil garantir celeridade nos processos, o deslocamento de outros magistrados para atuar como garantista poderá impactar negativamente esse cenário. A perda de produtividade, pelo menos inicialmente, deve ser significativa. Da forma como está, a logística e o planejamento financeiro dos tribunais poderão sofrer prejuízos e como se costuma dizer em bom português: será um desafio de “trocar o pneu com o carro andando”.
Natural que haja resistências, tal como ocorreu quando da instituição das audiências de custódia. Todavia, salvaguardando as particularidades e dimensões de cada medida, é necessário debater e aperfeiçoar o processo penal brasileiro. A ressalva que faço é que tais medidas não se reportem especificamente ao Judiciário, mas a todo Sistema de Justiça.
Por falar em audiências de custódia, será necessário redefinir competências, pois caberá ao juiz de garantias zelar pela integridade do preso, podendo decidir sobre a prisão provisória ou aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, de forma similar ao que já ocorre na aludida audiência.
A polêmica gira em torno de um instituto moderno, trazendo, portanto, alterações em um sistema que se encontra estabilizado. Assim, mudanças costumam ser vistas às avessas, pois rompe com uma cultura organizacional que já possui um modus operandi consolidado.
Se haverá ou não a aplicação imediata da nova lei, considerando o curto prazo para a sua vigência, é um debate que considero válido, em razão de todo o já contextualizado, especialmente do exíguo tempo para mudanças necessárias na estrutura do Judiciário. Fato é que, cedo ou tarde, a figura desse magistrado se tornará indispensável ao bom andamento da justiça criminal.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.