Até hoje, quando assisto ao noticiário sobre as guerras que ainda assolam boa parte do globo, recordo-me da fatídica imagem do garoto sírio Aylan Kurdi. Trazido pelas ondas do Mediterrâneo e deixado à beira de uma praia na Turquia, após um naufrágio que vitimou dezenas de pessoas que tentavam uma travessia, a imagem chocou e se tornou símbolo de uma crise humanitária sem precedentes em nossa história.
Fragilizadas em seus países, pessoas partem de casa rumo ao desconhecido levando apenas o que conseguem carregar – quando possuem algum bem –, além de filhos e a esperança em um amanhã melhor. São dezenas os locais de onde partem essas pessoas, mas a situação se acentuou em países como Síria, Afeganistão, Iraque, Paquistão, Somália, Iémen, Nigéria, Venezuela e, mais recentemente, Nicarágua.
São pessoas de todas as idades, famílias inteiras cruzando rotas mortais na corrida por uma noite de sono tranquila. Perseguidos em razão de sua etnia, orientação sexual, posição política, convicção religiosa. Alguns são apanhados no fogo cruzado de uma guerra que não é a sua, ou simplesmente existem aqueles que fogem da escassez de água e de comida. Juntos, já alcançam a assombrosa soma de 51 milhões de refugiados, segundo a ONU.
Apesar de toda atrocidade cometida contra a espécie humana pelos seus comuns, há que diga que essas pessoas não têm o direito de cruzar fronteiras, seja por terra ou mar. Veja bem, não se pretende aqui analisar a imigração rotineira, aquelas na qual se busca apenas uma vida melhor no país vizinho, como se vê comumente pessoas de várias partes do mundo partindo para os grandes centros econômicos mundiais.
Não se pode, em um ato simplista, minimizar os graves problemas que essas pessoas passam em seus países, onde são privadas de praticamente tudo. “Ora, me compre um bode!”, expressão que apesar de grosseira, cabe bem para manifestar a indignação com esse tipo de pensamento. Essas pessoas não estão a fazer turismo ou em busca de trabalho.
O “x” da questão é bem diferente e reporta ao contexto vivido por essas pessoas, sem direitos, sem trabalho, sem liberdade política, sem liberdade de expressão, ser liberdade religiosa, sem liberdade! É deste cenário de exceção e privação que as pessoas fogem, acima de tudo, para preservar suas vidas. Elas se lançam em uma travessia tão arriscada e mortal simplesmente para sobreviver, que seja um dia a mais.
Por um instante, tente responder o que faria para salvar a própria vida? E a do seu companheiro ou sua companheira? E a dos próprios filhos? Pois é! Em um misto de desespero, coragem e esperança na vida, essas pessoas simplesmente deixam tudo e seguem rumo às incertezas de um futuro desconhecido, mas com a convicção de que poderão dormir por mais uma noite. Um dia a mais no conforto de quem tem um lar, um teto, é algo normal; já para aqueles refugiados, cada novo amanhecer é um triunfo a ser comemorado.
Mais do que solidariedade dos cidadãos mundo afora – o que tem sido importante – é a união séria e comprometida por parte de governos e organismos internacionais, notadamente aqueles de direitos humanos. Países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) devem ser protagonistas na garantia da integridade dessas pessoas que vivem a cruzada pela vida.
Com raríssimas exceções, o que se vê são fechamentos de fronteiras, devolução de refugiados como se fosse um objeto entregue no destino errado, criação de normas anti-imigração. Ainda há aqueles abandonados ao mar, largados à própria sorte, como se não fosse problema desta ou daquela nação. Atitudes como essas não trarão solução para o problema.
Entendo que o debate a ser levado à mesa deve ter pelo menos dois objetivos a serem perseguidos: o primeiro trata de como acolher os refugiados garantindo-lhes o mínimo de conforto e bem estar; o segundo, diz respeito à busca de uma solução para a crise que os países de origem enfrentam, a fim de que essas pessoas possam retornar em segurança aos seus lares.
A dificuldade maior em buscar uma agenda comum para a crise está nos interesses que as várias nações possuem quando entra este ou aquele país na pauta de discussão, de onde, em regra, precisa sair um consenso. Vetos a sanções a aliados, posições protecionistas ou simplesmente demonstração de força e poder, fazem com que as grandes nações não avancem na busca de uma solução para esses países em conflito, jogando uma população inteira à beira do caos.
Para amenizar, soluções paliativas garantem a criação de espaços que muito se assimilam aos vergonhosos campos de concentração, os quais a história já encarregou de retratar. Seres humanos são jogados como bicho em locais improvisados, fechados, inseguros, superlotados, sem condições sanitárias, sem orientações adequadas, sem informações sobre sua terra natal, sem liberdade de locomoção, sem perspectivas de futuro.
Nesse jogo de retórica das grandes e poderosas nações, notadamente os Estados Unidos e alguns países europeus, o debate sério e comprometido parece estar longe de sentar à mesa e o assunto segue como pauta secundária na agenda global. A ONU precisa capitanear esse movimento, fazendo com que a questão dos refugiados seja enfrentada com primazia e de maneira coordenada.
A história não mente. Hoje as grandes potências viram as costas para países que durante séculos tiveram toda sua riqueza expropriada, principalmente aqueles um dia colonizados. Quantas não foram as nações europeias que, tal como parasitas, enriqueceram seus cofres e o de gerações de abastados nobres à custa da exploração das riquezas de além-mar? Diante desse paradoxo, chega-se a uma lamentável constatação de que os seres humanos parecem estar perdendo aquilo que deveria ter de mais essencial: a sua humanidade.
Osmar Gomes dos Santos
Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís
Membro das Academias Ludovicense de Letra, Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.