Na busca por uma vida mais longa ou mesmo para a imortalidade, o ser humano parece não encontrar limites. Como se trata de mais um sonho a ser alcançado pela humanidade, ao que tudo indica há pessoas levando muito a sério o assunto, abrindo espaço para um novo e milionário nicho de mercado. Naturalmente das relações sociais que envolvem o tema, decorrem conflitos que terminam por chegar na Justiça.
Um caso julgado na última semana chamou a atenção do meio jurídico devido o ineditismo e a complexidade da matéria. O Superior Tribunal de Justiça – STJ, julgou um processo que garantiu a vontade, em vida, de um brasileiro de ter seu corpo congelado após a morte, com base na técnica da criogenia, que, em suma, consiste na preservação do corpo post mortem em solução de nitrogênio líquido, que pode chegar a -196 °C. A depender do avanço da ciência, quiçá um dia ele poderá ser trazido à vida novamente.
A filha do segundo casamento, que morava com o engenheiro falecido, tomou a decisão do congelamento no Instituto de Criogenia de Michigan, nos Estados Unidos, em razão do pedido do pai. Mas outras duas filhas do primeiro casamento, entendiam que o corpo deveria ser enterrado no Brasil, no estado do Rio Grande do Sul. Restou à terceira Turma do STJ entender, por unanimidade, que o corpo deve permanecer nos EUA, obedecendo à vontade do brasileiro.
Tecnicamente não foram analisados ou discutidos os efeitos da criogenia e da sua possibilidade em um futuro próximo, mas tão somente se essa vontade do falecido em ser mantido congelado afrontaria alguma norma brasileira. Como foi verificado não haver previsão legal, a fundamentação se deu com base no que rege o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Prevaleceu o entendimento de que a legislação brasileira resguarda a vontade particular de cada nacional e isso abarca a questão da destinação do corpo humano após a morte. Um exemplo que não está longe do nosso cotidiano são os transplantes de órgãos, que pode se dar por vontade manifesta do morto quando em vida, ou mesmo a própria família decidir, após a morte, sobre a doação.
Embora a decisão não verse sobre a prática da criogenia no Brasil, ela abre caminho para um amplo debate que extrapola a seara do direito e avança sobre o tecido social. Isso porque não se trata do avanço da medicina no sentido primário de zelar pela saúde e bem estar humano, mas sim de experimentos que vão além, possibilitando ao homem interferir na “hora de partida”.
Técnica já aceita e permitida em outros países, naturalmente em fase experimental, a sua essência consiste na incessante busca por pesquisadores de um caminho para ressuscitar os mortos e, em momento posterior, consolidar a “cura para a morte natural”, ou seja, assegurar a vida eterna ou pelo menos o prolongamento dela.
A prática reacende um eterno conflito da dicotomia ciência versus religião. Pesquisadores parecem não ter limites para brincar de Deus, como ocorreu no caso da ovelha Dolly, que veio ao mundo após procedimento científico de clonagem de ser vivo, ou o já habitual uso de embriões congelados para fins de inseminação artificial, sem a natural concepção entre homem e mulher.
Pelo lado da ética religiosa, a vida deve seguir seu curso normal dado pelo Criador, sem interferências e poder de decisão nos quesitos dar ou tirar a vida. A própria eutanásia é prática sistematicamente atacada pelas mais diversas religiões, com destaque para o cristianismo. Não cabe ao homem decidir sobre dar ou trazer a morte, mas apenas atuar nesse limiar para que a vida tenha a qualidade e o conforto que a medicina pode oferecer.
Enquanto isso a criogenia avança, ainda que a passos lentos. Pelo menos 200 corpos já se encontram congelados nos Estados Unidos, na vã esperança de, digamos, daqui a estimados 400 anos, voltarem à vida. O primeiro corpo congelado que se tem conhecimento é o professor James Bedford, em 1967. Sua câmara permanece em pleno funcionamento até os dias atuais.
Nas telas do cinema, essa realidade já foi retratada algumas vezes, a exemplo do filme O Demolidor, 1993. Nele, Sylvester Stallone é um agente policial que após culpado pela morte de inocentes, é congelado e só retorna à vida no ano de 2032 com a missão de capturar o psicopata representado por Wesley Snipes, que fora congelado com ele no ano de 1996.
Ficção à parte, a decisão do STJ promete render bons estudos e artigos jurídicos Brasil afora sobre a criogenia e todos os demais temas a ela ligados. Ao que tudo indica, seguirá a ciência buscando seus avanços, a religião pela manutenção
de suas crenças e dogmas e à Justiça caberá ponderar os limites necessários a realização de cada nova prática científica.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís; Membro das Academias Ludovicense de Letras, Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.