*Por Osmar Gomes dos Santos
Enquanto cidadãos devemos todos ficar atentos para o ódio que cresce a cada dia na arena de debates políticos. Estamos permitindo ultrapassar as barreiras do discurso e externar com ações estapafúrdias nossos sentimentos mais bárbaros.
O caso que chocou o Brasil no último domingo, ou, pelo menos, a parte sensata da população, que ainda é maioria, traz importantes reflexões sobre a atual conjuntura brasileira, mesmo não podendo estabelecer a politização no caso que reputo pontual. Porém, um estado de coisas que preocupa, assusta e põe em xeque o direito individual das liberdades, sobretudo de opinião. Não podendo esquecer o suposto uso de recursos públicos nas esferas Federal, Estadual e Municipal para instrumentalizar a detração da honra, da imagem e da dignidade de pessoas, sobretudo públicas, com a prática de FAKE NEWS, sem limites e nas barbas da nossa respeitada e democrática Justiça Eleitoral.
Um ato que deveria se resumir a uma comemoração da vida, terminou em morte e duas famílias destruídas. Sofrem esposas e filhos do agente penitenciário Jorge Guaranho e do guarda municipal Marcelo Arruda. O primeiro,com bebê de colo e o segundo, com quatro filhos, um deles de um mês.
Aparentemente nenhuma desavença anterior, nenhum motivo plausível, nenhuma discussão prévia motivada. Troca de tiros. Arruda não resistiu e sucumbiu, ali mesmo, após alvejado por vários disparos. Guaranho seguiu em estado grave para o hospital.
O resumo dos fatos serve para ilustrar a que ponto pode chegar a imbecilidade de um ser humano, ao se deixar levar pelo ódio. Mais do que isso, a intolerância que tem tomado conta do país e traz com ela o perigo de tempos sombrios sobre a política. Política essa que, como dizia Aristóteles, faz parte da nossa essência enquanto seres humanos, políticos por natureza. É algo intrínseco ao ser social, que nos tornamos ao longo de milênios de convívio naquilo que aprendemos a chamar de sociedade. Estado de equilíbrio alcançado a duras penas, mas que há pelo menos duas décadas está ameaçado por uma onda extremista que cresce em todo mundo. No Brasil, essa corrente já ameaça e já é tomada como modus operandi de grande parcela da sociedade, diga-se, de lado a lado.
Mas precisamos entender o que está em jogo de fato. Se a política é algo construído socialmente, porque ao invés da agressão não buscamos a via do diálogo em torno de boas ideais e soluções para os problemas? Apontamos o dedo para a guerra na Ucrânia, mas esquecemos de quantos matamos todos os anos por aqui. De quantos usam até mesmo instituições independentes, sérias e “imparciais” para o jogo sujo em detrimento de seus adversários.
É fato que o Brasil sofreu um turbilhão de acontecimentos no último século e início deste. A república sofreu transições, viu alternância no poder da velha oligarquia ruralista, presenciou o chamado Estado Novo em todos os seus estágios, viu emergir o populismo como movimento que ganhou as ruas.
Todos esses contextos marcados por revoltas e levantes de grupos movidos pelos mais diversos interesses. Enfrentamos uma ditadura militar, progredimos para uma democracia, que nessas três décadas conviveu com problemas e escândalos, mas que dispõe dos mecanismos de regulação que garantem sua manutenção.
O que não podemos é romper esse estado de coisas e todos os dispositivos e remédios constitucionais para abraçar a via da intolerância, da maldade, da crueldade, da busca do ganho pelo ganho, especialmente aquela fundada em ideologias políticas. Esquerda, direita ou centro, são posições, ainda que instalado o “conflito”, devem estar guardadas ao debate construtivo, daquilo que é bom para a nação. Falo de nação , englobando todos os entes da federação e seus governantes e postulantes à governantes.
Como dizia o sociólogo Georg Simmel, o conflito é algo inerente à vida em sociedade. O antagonismo de posicionamentos nos permite debater, discordar, defender nosso ponto de vista. Ao cabo, chega-se a um denominador comum, que não necessariamente resulta de uma parte isolada, mas de um pouco da contribuição de todos.
Essa unidade defendida pelo estudioso é resultado das somas das posições contrárias, sempre positivo. Noutra via, há uma perigosa tendência pela eliminação do outro. A disputa de caráter bélico, que busca a aniquilação do oponente, não é algo saudável e constitui uma grave ameaça à democracia.
Uma posição que enxerga outras como inimigas e não adversárias. Característica de projeto de poder totalitário, no qual somente há espaço para uma forma de pensamento, sem margem para o contraditório.
Forma de pensar e agir que termina por contaminar cidadãos ditos “de bem”. Baseada em um jogo de retóricas, de construção de inimigos, disseminação de notícias falsas e a oferta da solução única para o “mal” forjado que ameaça a nação. Corrente que ganha força e que acende o alerta.
Esse movimento também é muito bem desenhado por Levitsky e Ziblatt, na recém-lançada obra “Como as democracias morrem”, que virou best seller.
Apesar de pairar uma nuvem sombria sobre nossa democracia, ainda há uma saída possível. O momento exige união daqueles que prezam por instituições fortes e um país livre, independente de lados que possam ocupar na “corrida” política, servindo para os de ontem e os de hoje, visando a garantia de existência de futuro promissor para os nossos filhos , netos e bisnetos.
Penso que nunca precisamos, tão honestamente, discutir um projeto de país, de Estado. Proposta essa fundada em debate aberto e íntegro, da qual participem as mais diversas forças democráticas. O problema da democracia não consiste na sua essência, mas no fato de ainda não sabermos lidar com ela.
É momento em que adversários precisam se unir, cidadãos precisam assumir suas responsabilidades e adotar posições firmes. Momento este que será marcado por conflitos, certamente, mas que terá como resultado uma base de ação que recoloque o país nos trilhos.
Somente assim será possível extirpar o mal que nos assombra, ou os males de lado a lado que nos assombram, o desejo de aniquilação do outro em razão de suas escolhas, o sentimento de negação que tomou conta de grande parte da nação, de lado a lado. Somos um país grande, um Estado grande, acima de quaisquer interesses e projetos de poder. Somos uma nação livre e assim vamos permanecer. Que o Poder Judiciário e o órgão do Ministério Público se mantenham independentes e nunca sirvam de instrumentos nas mãos e nos pensamentos de uns contra os outros.Mas sirvam sempre e sempre como únicos instrumentos de aplicação da Justiça e defesa da democracia.
*Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís. Escritor; Cronista; Poeta. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.este último está corrigido