*Por Osmar Gomes dos Santos
– Desculpe, vejo que você está sem a credencial. Você não pode passar por aqui. Este acesso à praia é apenas para quem está hospedado.
– Como assim, moço? Não posso cruzar esta faixa de areia? Eu sempre fiz isso. Sempre passei por aqui. Gosto de ficar naquele cantinho ali.
– Bom, minha senhora, peço desculpas. Mas são ordens do proprietário do “Gente Rica Resort Boutique”, que adquiriu esta área recentemente. Agora, esta área é privada e exclusiva para hóspedes, inclusive, aquele cantinho ali.
– Para hóspedes e seguranças altos e mal encarados como o senhor, né? Já pensou que nos seus dias de folga você – cidadão dito “comum”, como eu – também estará impedido de cruzar esta faixa de areia?
O curto diálogo acima serve para retratar uma situação do nosso cotidiano que pode se tornar realidade em breve. Tudo vai depender de qual rumo a chamada “PEC da Privatização das Praias (PEC nº 3/2022)” tomará no Congresso Nacional. Apesar do nome, não se trata exatamente de privatizar as áreas de banho.
Embora não trate explicitamente da “privatização das praias”, o texto da Proposta de Emenda à Constituição abre espaço significativo para que diversas áreas de banho tenham seus acessos restringidos. Isso porque tais acessos estariam dentro de áreas, que hoje da União, passariam à iniciativa privada.
Condomínios de luxo, hotéis, pousadas boutiques, resorts. Além do crescimento da especulação imobiliária, algo já esperado, milhares de empreendimentos país afora, já devidamente instalados, passariam a deter direito integral sobre áreas hoje transitadas indistintamente.
Hoje, as chamadas áreas de marinha são ocupadas sob a condição de possibilitar o acesso indiscriminado de pessoas às praias, o que poderá deixar de existir se tal terreno passar à propriedade privada, que controlará, conforme sua conveniência, o trânsito de pessoas. Isso porque a PEC não prevê a manutenção do acesso da população, via terreno, às faixas de areia e ao mar, que seguem sendo áreas públicas. Ou seja, há uma área de banho que hoje é frequentada por qualquer cidadão, mas que, com a PEC, poderá servir ao exclusivismo daqueles que podem pagar para se hospedar ou morar na propriedade que dá acesso a esse espaço público.
Na prática, mais um mecanismo capaz de seguir a operacionalização do exclusivismo e elitização dos espaços públicos. Áreas, diga-se, que para muitos se constitui em último reduto de lazer e entretenimento aos finais de semana ou feriados.
Mas essa situação já não ocorre? Sim! Existem praias no Brasil cujo acesso é restrito a proprietários e hóspedes dos empreendimentos. Mas essa situação é irregular e afronta a legislação vigente, uma vez que o acesso à praia e ao mar deve ser assegurado. Já houve decisão recente, em região costeira, em que um resort foi condenado a abrir o acesso.
Há casos que se instalam cercas, muros, câmeras. Fazem uso de seguranças, cachorros e até boias para demarcar o mar. Tudo em nome do exclusivismo elitista que ainda impera nas mentes de uma parcela privilegiada da nação.
Ah, tal questão não está afeta apenas às praias, mas às áreas costeiras pertencentes à União, o que inclui terrenos em beira de rios e mangues.
Há quem defenda e há quem seja contra a aprovação da PEC. Fato é que o desfecho não pode desviar da coisa pública, do interesse coletivo em detrimento do exclusivismo privado. A discussão é complexa e ainda vai permear diversas sessões no Congresso e ocupar tempo relevante na ordem do dia do espaço público.
Fato é que em um espaço tão plural de convivência, como se configuram nossas praias, um dos últimos redutos de lazer para milhões de pessoas, qualquer ideia de segregação deve ser abolida.
Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.