*Por Osmar Gomea dos Santos
A humanidade adentra ao século XXI, já consumindo praticamente um quarto deste período temporal e com avanços tecnológicos inimagináveis até o fim do século passado. Algumas coisas, no entanto parecem nos fazer retroceder enquanto humanidade e levar à profunda reflexão e à constatação de que é necessária a mudança de atitude.
Esta semana acompanhei alguns noticiários que falavam do (já antigo) problema da cracolândia, em São Paulo. Em uma delas, a legenda dizia algo como “moradores e comerciantes querem que o fluxo tenha local único” soou, para mim, quase que como a naturalização do problema e uma forma do poder público estabelecer o controle sobre viciados.
Para demarcar o diálogo, trago dois conceitos para entender essa dinâmica social, que aflige a capital econômica do país e, também, já se espalha por outras cidades brasileiras, potencializando outros problemas sociais e de ordem econômica.
Em São Paulo, a cracolândia se consolidou ainda na década de 1990, na região da Luz, e tem esse nome por causa da principal droga comercializada por traficantes e consumida por um aglomerado de dependentes, o crack. Ações policiais e de reurbanização, no entanto, forçaram a mudanças sucessivas da cracolândia, que se instalava em outros territórios a cada nova ação do poder público.
Após repercutir muito na mídia e se transformar num grave problema social, as ações policiais passaram a acontecer de forma mais frequente, geralmente com perfil de dispersar o movimento e sem qualquer caráter de solução efetiva.
Com as corriqueiras ações policiais, traficantes e usuários passaram a atuar como nômades, fixando-se sempre de forma temporária em outros pontos do centro da maior cidade do país. Esse deslocamento contínuo hoje é chamado “fluxo” e já não tem apenas o crack como única droga comercializada e consumida.
Dito isso, cabe regressar aquela legenda que me deixou deveras reflexivo. Diante de um problema que se arrasta por, pelo menos, três décadas, a naturalização do caos faz com que cidadãos sugiram ao poder público a manutenção desse movimento que transgride normas legais e morais em um local “definido”.
Outro ponto que me chamou a atenção foi o fato de isso ter sido noticiado ao vivo, em telejornal de grande audiência. É natural que a imprensa está cumprindo seu papel de informar, mas senti falta de um debate mais profundo acerca desse “desejo” da população diante do desespero que vive diariamente.
É quase um requerimento público ao Estado, que poderia ser resumido nesses termos: Nós, cidadãos da região central, diante da inconstância do fluxo, que a cada semana se instala em uma região, requeremos ao poder público que instale traficantes e viciados em local fixo e espaço controlado, para que possamos viver e trabalhar com previsibilidade, com segurança e em paz.
Como seria esse tal “local único”? Em analogia aos muitos lugares institucionalizados, portanto legais – em que há reunião de pessoas e manifestações sociais ordeiras, pacíficas, desportivas e culturais –, pensei: seria a reivindicação de um “cracódromo”?
Não é possível aceitar que o mais rico estado não encontre uma solução definitiva para o problema. É preciso, urgentemente, em São Paulo ou em qualquer outra cidade onde esses movimentos acontecem, que o poder público assuma a responsabilidade pela solução, transmitindo segurança a moradores e comerciantes.
Em tempo que se fala e se discute as cidadanias, exatamente no plural, não se pode permitir, enquanto sociedade e Estado-nação, que concidadãos vaguem como zumbis, reféns de substâncias comercializadas a céu aberto.
O problema envolve segurança, saúde, educação, economia, geração de emprego e renda e tantas outras políticas públicas. Envolve revisão da legislação sobre a questão da internação compulsória, do tratamento adequado para essas pessoas. Exige um trabalho dedicado das forças de segurança para impedir que a droga chegue, além de identificar e punir traficantes.
Não se pode naturalizar o caos, tampouco institucionalizá-lo. Em tempos de inteligência artificial, internet das coisas, carros que andam sozinhos e até modelos que voam, não se pode aceitar a decadência humana em qualquer condição, tampouco escancarada aos olhos do mundo.O Ministério da Justiça e Segurança Pública pode contribuir muito com um debate preventivo, sem esperar que essas pessoas entrem no sistema para que sejam observadas.
Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís.Membro das Academias Ludovicense dela Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.