*Por Osmar Gomes dos Santos
Nos últimos anos o cidadão brasileiro tem ouvido cada vez mais se falar em imunidade parlamentar. Diversos têm sido os acontecimentos que remetem a essa discussão, que ocupa desde as bancas de estudos às mesas de botequim.
Convém destacar, em um primeiro plano, que toda e qualquer atividade profissional guarda certa essência de imunidade. Isso tomando pela compreensão do senso comum. Quem compreende de seu ofício, executa com esmero sua atividade, tem propriedade para falar sobre ele. Há casos em que a cultura lhe outorga posição quase incontestável. Quase.
Dito isso, cabe verificarmos o que significa essa tal imunidade parlamentar, tão debatida ultimamente. Importante que se diga que a mesma não deve ser confundida com privilégios, ainda que se encontre essa interpretação em alguns dicionários.
Privilégios alcançam as pessoas, em regra se dá por costumes e tradições. A imunidade parlamentar restringe-se ao cargo ocupado enquanto agente político em uma sociedade que o elegera para representá-la. É, portanto, uma prerrogativa, que só o resguarda em razão da posição de representação social que exerce.
A imunidade confere ao investido em cargo público eletivo uma proteção na função de representante dos cidadãos, servindo como um mecanismo de blindagem ao Parlamento e, em último caso, a própria democracia. Ela assegura a independência e autonomia funcional que a função requer, mas não o coloca acima do bem ou do mal, jamais acima da verdade.
Essas prerrogativas de função estão insculpidas na Constituição Federal, conforme se verifica no artigo 53. Já no caput, o dispositivo traz a inviolabilidade civil e penal; decorrendo daí as demais imunidades: processual; prisional; possibilidade de sustação de processo criminal; foro especial; e não obrigatoriedade de testemunhar.
O mecanismo não deve ser compreendido como um “livramento” para eventuais desvios de conduta. Apenas estabelece que, na ocorrência destes, haverá um rito processual diferenciado a ser obedecido, visando tão somente a resguardar a vontade popular. Veja que é tão importante que sequer o estado de sítio pode sustar seus efeitos.
Apesar da garantia de inviolabilidade em razão de manifestações e opiniões, a imunidade encontra limites. O mecanismo precisa ser utilizado dentro das balizas fundadoras do Estado democrático de Direito, nunca fora dela.
Não se pode, portanto invocar a imunidade para, por exemplo, praticar atos que atentem contra a ordem estabelecida ou contra as instituições que garantem esse funcionamento. Nem tão pouco para ofender a honra e a dignidade das pessoas, protegidas por princípio constitucional. Para toda e qualquer imunidade, para toda e qualquer prerrogativa, inclusive para a clássica “freedom of speech” existem limites a serem observados.
Interessante verificar essa “relativização” da imunidade parlamentar, especialmente em julgados recentes do Supremo Tribunal Federal (STF), órgão máximo do Judiciário e responsável pela interpretação e guarda dos preceitos constitucionais. A Corte já limitou, por exemplo, que o foro somente alcança a crimes cometidos na função parlamentar. Fora dela, cabe à 1ª instância processar e julgar.
Também já decidiu que a vedação da prisão alcança o tipo preventiva e não aquela decorrente do trânsito em julgado. Sobre a imunidade material, decidiu que somente se aplica a opiniões e votos proferidos em função do mandato. A imunidade não resguarda, portanto, como dito acima, ofensas e ataques à democracia e ao Estado de Direito. Nem deve resguardar ofensas à honra e dignidade das pessoas, por restar, em caso contrário, ofendida a própria democracia, face aos comandos principiológicos fundamentais postos na Constituição Federal de 1988.
Entende-se, pois, que não basta estar na condição de parlamentar e revestir-se de uma armadura. Como aponta a deontologia, é preciso agir em conformidade com os deveres que o cargo reserva ao ocupante. Assim, sua atuação encontra limites pautados em valores ético-morais, traduzidos em normativos que fazem a sociedade funcionar.
Conforme julgado recente na Corte Suprema, a Constituição não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional. Tampouco manifestações que estimulem o rompimento do Estado de Direito, a extinção de cláusulas pétreas e nem a separação dos poderes.
Assim, como toda norma evolui no tempo e espaço, a imunidade vai se acomodando aos anseios sociais, à ordem social estabelecida por todos nós quando discutimos, seja no Parlamento, seja no botequim. Seja no cumprimento de nossos deveres funcionais diários, seja no momento de escolha dos nossos representantes nas urnas.
Para o bem da nação, a imunidade prevalece, mas nas devidas proporções, nunca absoluta. Assim deve ser em toda e qualquer atividade laboral. Dessa forma, é possível consolidar o projeto democrático em curso, justo e igualitário em diretos e deveres. Para todas e todos.
*Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís. Escritor; Acadêmico; Professor; Palestrante. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.