*Por Osmar Gomes dos Santos
Crônicas são, via de regra, escritos que contam um recorte que vivemos do cotidiano, algo recente, temporal, corriqueiro. Aquele registro que pretendemos deixar “impresso” para gerações futuras, um fragmento do tempo e espaço.
Mas, com a licença devida, quero fazer uma crônica às avessas, recontando um recorte de tempo que há muito já se foi. Uma pauta atemporal, para posteridade. A época compreendia o final da década de 1980 e início dos anos 1990 quando nos organizamos na sala para assistir a mais uma corrida.
Os mais jovens certamente não alcançarão a total compreensão do que significava as manhãs de domingos para toda uma nação, ou, pelo menos, quase toda. Incompreensão que não advém da falta de capacidade, mas de não testemunharem aquele que para 70% dos brasileiros foi o maior desportista que o país teve.
O motivo do alvoroço tinha nome e sobrenome: Airton Senna. Um brasileiro que devolveu o orgulho a um país de levantar e agitar a bandeira verde e amarela, de olhar para frente e de esperançar.
A alegria era contagiante e nos fazia acelerar os corações juntamente com o ronco dos seus motores, especialmente na equipe McLaren, onde foi tricampeão. Cada manhã de domingo com Senna nas pistas tinha um gosto especial de Copa do Mundo.
Literalmente, o país “parava” por alguns instantes para vê-lo conduzir seu “fórmula um” em uma relação entre máquina e homem que, certamente, jamais existiu igual. Com extrema dedicação, Senna conhecia cada detalhe, cada vibração, cada barulho do seu “amigo das pistas”.
Um exemplo de comprometimento, dedicação e perseverança. Preparava-se física e mentalmente para enfrentar todos os desafios de sua época, o alto nível dos adversários nas pistas e a política que dominava os bastidores. Mas superava todos esses obstáculos. Obstinado, corria para ser o melhor, corria pela busca incessante da vitória, corria por milhões de brasileiros.
Mesmo sem o conhecer, Airton Senna parecia íntimo de cada brasileiro. Aparentava uma espécie de patrimônio mundial, mas que só nós podíamos chamá-lo de “nosso”. Alguém que parecia transcender o humano e constituir-se como força genuinamente verde e amarela em toda sua intensidade e que movia a todos nós.
Um homem cujos números foram ultrapassados, mas seus feitos jamais serão igualados. Não existiu, ouso dizer que não haverá, outro igual. A forma destemida como se portava a bordo em uma época do automobilismo raiz, sem a eletrônica atual. Conduzia-se no punho, de ponta a ponta.
E haja braços para vencer pela primeira vez em Interlagos, após sete corridas sem sucesso em solo pátrio. Quanta saudade daquele 24 de março de 1991, que não poderia entrar para história com uma simples vitória. Tinha que ser na raça, tinha que ter a marca do Senna.
Na reta final de uma corrida eletrizante, Senna perdeu as marchas de forma sucessiva, restando-lhe somente a sexta. Seus rivais se aproximavam e para nós, que assistíamos atônitos e sonhávamos com aquela vitória no Brasil, ele tinha duas opções: abandonar ou levar o carro ao extremo do que seu corpo e seus braços poderiam suportar.
Para Senna, no entanto, a primeira opção nunca existiu. Com extremo esforço e indo muito além dos seus limites físicos, mas com extrema força mental, segurou o carro nos braços e cruzou a linha de chegada em primeiro lugar para marcar a sua primeira vitória diante de seu povo. Exausto, aos prantos de dor, mas com o sonho realizado.
No pódio, em seu lugar mais alto, o corpo cansado. As mãos trêmulas mal davam conta de levantar o troféu. Um ato heroico que arrebatou de vez os corações daqueles que passaram a idolatrar Senna pela sua entrega a um propósito, que era de dar aquela vitória ao povo brasileiro, de colocar o seu país no ponto mais alto do automobilismo.
Mas as mesmas curvas que com maestria ele desafiava e contornava com uma destreza peculiar, foi, também, seu derradeiro suspiro. Eis que a famosa tamburello, que se inclinava à esquerda após um ápice de mais de 300km por hora, teve o despautério de levar o nosso Senna.
A morte de Roland Ratzenberg nos treinos da sexta, o grave acidente com Rubens Barrichello no sábado foram prenúncios daquele trágico fim de semana no circuito de Ímola, na Itália.
De volta ao Brasil, o corpo de Senna seguiu em cortejo jamais visto na história do país. Homens, mulheres, crianças. Todas as idades a espreitar a carreata que seguia. Nenhuma palavra, apenas o silêncio da incompreensão, revelado pelas lágrimas a corroer o âmago de uma dor que teimava em não cessar.
Senna foi diferenciado em tudo que fez em vida, especialmente na arte de ser humano. E deixou um legado inigualável, não apenas na Fórmula 1. Serve de inspiração em todos os campos, sobretudo como exemplo de superação e devoção a uma causa. No melhor dos lemas: busque com dedicação e honestidade, que um dia você chega lá.
Como atleta e como pessoa, lutou por um país melhor para que lá fora fossemos vistos com muito respeito. Mostrou para toda uma nação que era possível caminhar de cabeça erguida, com orgulho estampado no peito, com a esperança no olhar por dias melhores.
Foi-se o homem, o ídolo. Nasceu uma lenda. Como tal, hoje eternizada para todas as gerações.
*Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís.Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.