*Por Osmar Gomes dos Santos
Por séculos fui subjugada aos caprichos de um ordenamento sustentado sob falsos argumentos, inclusive religiosos. Tinha uma única função: a de reproduzir, gerar vida, como se vida própria não tivesse.
Retardaram meus direitos, extirparam minha dignidade, escondida sob o véu do patriarcado e as vestes justificadas por uma interpretação infundada da palavra. Fui reprimida, fui impedida, fui proibida.
Tolheram-me a beleza, a pureza, o prazer. Arrancaram-me do rosto o sorriso, seja com a burca ou com a dor que formaram cicatrizes do tempo sobre uma face calejada de uma vida de submissão e sofrimento.
Sob o julgo religioso, ainda que metafórico, fizeram-me surgir da costela do homem. Tal preceito não se investe de direito. Se Deus criou a todos e todas nós a sua imagem e semelhança, justificativa não se encontra para submissa eu estar.
Chega! Já sofri demais. Por muito tempo apagaram meus sonhos, arrancaram-me os estudos, fecharam as portas do mercado de trabalho, como se imprestável eu fosse. Só não tiraram minha esperança.
Não me concederam um lugar digno na sociedade. Aquém disso, sequer discutiram se caberia a mim lugar algum, que não aquele das aparências de uma boa e recatada mãe e esposa. Isso se eu prestasse para tal ofício.
Fui usada, abusada, possuída. Tão cedo arrancaram-me a pureza. Tudo contra a minha vontade. Não me perguntaram sobre sentimentos, tampouco o que desejava eu. Opinião, vontade? Não ficou para mim, pois já vim ao mundo sem.
Desde a tenra idade. Conduta, vestimenta, regras, comportamento, gestos, palavreado. Códigos de uma sociedade que me apagou. Compelindo-me a um quadrado perfeito, como se imperfeita eu fosse.
Mas acordei! Livrei-me dos nós das amarras que ainda insistem em me entrelaçar. Mas a caminhada me deu jogo de cintura e já não me permito esse cabresto. Rótulos e estereótipos são meras tentativas de me fazer voltar a um lugar no qual não deveria ter estado.
Chega! Quero meu espaço no mundo, pois carrego um mundo que já cabe mais em mim. Não quero gracejos, favores, sorrisos. Não quero favores, tampouco facilidades. Quero viver junto, ou só, mas quero viver.
Não quero esperar o 8 de março para receber elogios, flores, mensagens, atenção. Não quero o politicamente correto por obrigação, ser personagem de uma trama social na qual se ganham likes por ações simpáticas em datas importantes.
Quero ser vista olho no olho, lembrada, amada, valorizada todos os dias do ano. Algo de errado nisso? Quero fazer minhas escolhas, minhas roupas, meu cabelo, maquiagem. Não quero e não preciso de dono, pois dona de mim já sou.
Já não estou sob suas presas, seu julgo, seus caprichos. Um dia precisei de sua permissão até para votar; hoje, sou eleita também com o seu voto. Dirijo, por sinal muito bem. E não apenas carro, mas o trem, o avião, o navio, empresas, cidades, estados, nações.
Não tente mais me calar. Não tente mais tirar de mim a alegria, o sopro divino que me impulsiona a seguir adiante. Estudo, acordo cedo, empreendo, mantenho a casa, tal qual você. Iguais em direitos.
Entenda de uma vez que virei a página das construções sociais que me impuseram valores com os quais não me identifico. Sou mulher, quero viver, quero respeito, quero equidade. Não quero que me digam onde devo estar, mas quero estar onde eu quiser.
*Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís.Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.
Dr. Osmar,
Você com sua sensibilidade e talento genial para transformar sentimentos em arte.
Suas palavras são obras de arte e vindas de um homem, mostram o tamanho da sua empatia com a alma humana.
O mundo precisa muito da força das mulheres , e também da sensibilidade de homens como o senhor.
Parabéns pela crônica , me representa suas palavras!!!
Dra. Vivianne