A venda sobre os olhos da deusa Têmis incorpora uma das bases da atuação da magistratura: a imparcialidade. Por essa razão é que a Lei 13.869/19, que entrou em vigor no mês de janeiro do ano em curso não foi bem recepcionada pelos membros do Judiciário e também pelos do Ministério Público. O normativo termina por “engessar”, notadamente processos criminais, onde a atuação do juiz e do promotor é fundamental na busca da verdade dos fatos.
A medida entra em vigor sob o argumento de que a lei visa impor limites na atuação dos agentes, para que os mesmos não extrapolem suas responsabilidades funcionais. É no mínimo lançar suspeita sobre atuação de todo o Sistema de Justiça, cujos membros já atuam no estrito dever legal previsto por um conjunto de normas vigentes, todas amparados na Constituição Federal.
A lei em grande parte, além de tipificar algumas condutas, buscou instrumentalizar outras já previstas. Práticas até recentemente comuns foram criminalizadas, como no caso da decretação de condução coercitiva de investigados e de testemunhas antes de intimação judicial. No mesmo rol estão as interceptações de comunicações telefônicas e dados informáticos e telemáticos.
Outras já eram vedadas, como a impossibilidade de decretar prisões fora das hipóteses legais ou deixar de relaxar uma prisão ilegal, por exemplo. Ora, se um rito pontualmente não era obedecido, o próprio sistema legal dispunha de medidas que efetivasse o seu cumprimento, sem maiores prejuízos a terceiros. Do contrário, a anulação do ato poderia ser buscada. Ponto!
Para os que defendem a norma, há o argumento de que muitos dos crimes nela estão previstos exigem o dolo, ou seja, a intenção clara do agente abusar das suas prerrogativas. É esperar que o agente, de forma arbitrária, quase sadista, queira com sua conduta causar prejuízo a terceiros.
Eis que me pergunto: como interferir na subjetividade do magistrado quando este não aplica, segundo seu entendimento e a partir das informações que lhe chegam, as medidas cautelares em substituição à prisão? Como julgar, de forma objetiva, alguns aspectos meramente subjetivos que só cabem dentro da sua autonomia funcional?
O que dizer do habeas corpus? Ao advogado cabe a interposição do pedido em favor do cliente, é natural. Mas ao membro do MP cabe se manifestar e ao magistrado incumbe a análise, podendo deferir ou não o pedido. Como alegar que uma possível negação seja intencional somente para atentar contra os direitos daquele que peticiona?
Supor isso de um agente público concursado, que enfrentou rigorosos critérios de seleção para investidura no cargo, é por em xeque uma gama de princípios norteadores da administração pública e a própria autonomia das instituições, garantidas na separação dos poderes.
É de bom alvitre ressaltar que a neutralidade que se espera de um juiz é que ele não aja de ofício, nos casos em que a lei não autorizar, que não se confunde com ser diligente na apreciação dos pedidos trazidos aos autos nem com sua autonomia para julgar. Assim, a busca da verdade, não a própria, mas dos fatos, também perpassa pela sua atuação ativa, ora com mais, ora com menos celeridade em razão dos ritos, das variantes e das peculiaridades de cada processo.
Situações como as descritas acima, quando inobservado algum procedimento ou quando o requerente não obtenha êxito em sua empreitada, são passíveis de recurso no sentido de reformar a decisão. Agora, também de forma subjetiva, se pretende imputar o cometimento de crimes ao agente público que está atuando, com autonomia funcional, na consecução da finalidade que lhe foi incumbida constitucionalmente.
Seja na consecução penal, seja em quaisquer outros atos praticados por membros da magistratura, do Ministério Público ou forças de segurança, a atuação deve seguir um rito legal, previsto em lei, tal como estabelece o princípio da legalidade. Eventuais sanções por desvios poderão advir na mesma proporção da gravidade dos prejuízos causados.
Para que isso aconteça, já existe uma gama de normas balizadoras da atuação dos operadores do Direito, de advogados ao presidente do Supremo Tribunal Federal. São estatutos e leis que regem os próprios limites da atuação profissional, sobre os quais é preciso que se debrucem diariamente e fundamentem suas posições, sob pena de seus atos não prosperarem.
Sob os auspícios da condução do processo conforme preconiza o Art. 37 da Constituição Federal, o magistrado, tal como todo servidor público, deve atuar com base na legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Qualquer caminhada fora dessa linha insurge contra a ética que forma o pilar que sustenta a carreira.
Ademais, todos possuem seus direitos individuais e coletivos resguardados pela Carta Magna, alguns deles entendidos como cláusulas pétreas, sobre as quais não há que se cogitar modificação ou interpretação diversa da garantia do direito.
Não por acaso, a referida lei encontra hoje inúmeras resistências e enfrenta diversas Ações Diretas de Constitucionalidades impetradas no STF. Entidades representativas de magistrados, procuradores e até auditores acionaram o Supremo na intenção de tornar a lei incompatível com o ordenamento jurídico ora vigente.
Aos magistrados, membros do Ministério Público e agentes de segurança deve ser assegurada a sua independência funcional, sem qualquer interferência. Não se trata de um poder absoluto, visto que há um vasto sistema de controle legal e social, mas da manutenção das garantias funcionais que asseguram a sustentação do Estado democrático de Direito.
Polêmicas e debates a parte, a norma está em vigor e exigirá grande esforço de toda administração pública, que deverá adequar o seu funcionamento visando à obediência da sua inteligência. Da mesma forma, torna-se imperativo um alto investimento em toda estrutura do Sistema de Justiça para que haja condições materiais de operacionalizar a aludida lei. Não raro, vemos repartições públicas em todo Brasil sem aparato mínimo para o funcionamento e a boa prestação de serviços ao cidadão.
No tocante à magistratura, não tenho dúvidas de que continuará perseguindo a Justiça, valendo-se da venda nos olhos, da espada empunhada e da balança em posição de equilíbrio, denotando a imparcialidade na condução dos processos, a legalidade na aplicação da lei e o tratamento igual para que as partes possam praticar sob a garantia da ampla defesa.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letra