O cenário político brasileiro, já tão turbulento em razão da falta de harmonia que tem imperado entre os poderes ou mesmo interna corporis, com instituições não conseguindo buscar entendimento sequer na sua própria estrutura, ganhou vozes um pouco mais acentuadas. A razão foi a confirmação de proposta para uma nova constituinte, corpo de parlamentares formado com o fim exclusivo de redigir uma nova constituição.
A proposta de uma nova constituinte não é algo assim tão novo, mas saltam aos olhos os argumentos trazidos para justificar uma tentativa que já nasceu com prazo de validade vencido. Em que pese alguns dispositivos ainda não se encontrarem devidamente recepcionados por quem os deveria cumprir, alegar que há mais direitos que deveres não parece uma “desculpa” razoável.
Não é plausível, para não dizer sorrateiro, a fala de que a nossa Constituição Federal apenas privilegia direitos e não tenha deveres a serem cumpridos, seja nela própria ou em lei própria dela emanada para fins de regulamentação de matérias diversas.
Ademais, não há que se falar em excesso de direitos quando o que se busca, por meio da Carta Magna é a consolidação do bem estar social. Saúde, trabalho, educação, segurança, liberdade de expressão, de crença, de pensamento, de locomoção. Onde está a demasia em garantir uma sociedade justa, igualitária, fraterna e com liberdades na consolidação de uma democracia.
Temos muitos direitos? Sim, fato! Direitos que oram furtados dos cidadãos ao longo de duas obscuras décadas. Direitos que se perderam em masmorras, sob o acoite de carrascos de botas. Direitos que se esvaíram pelos ralos da ganância ao longo da história, subjugando a nação ao eterno sonho do país do futuro. Onde está o erro em garantir direitos?
Ao passo que nosso Ordenamento Mor estabelece direitos ele também, de forma automática, estabelece, na mesma proporção, os deveres equivalentes. Só há direitos quando, em contrapartida, há o cumprimento de deveres, seja pelo cidadão, seja pelo Estado. Um não existe sem o outro.
Há um ditado que diz que quanto mais velho, melhor o vinho. À sabedoria popular, acrescenta-se o fato de que o vinho precisa ser bem cuidado, guardado em temperatura ideal e a garrafa deve ser manuseada adequadamente. Assim é a constituição de uma nação. Um bom exemplo é a norte americana, uma das mais democráticas e que vigora há quase 250 anos.
Nossa Constituição é uma das mais bem arquitetadas em todo mundo. Alcança todas as dimensões da vida em sociedade, naquilo que é possível, e deixa a oportunidade para que emendas sejam feitas, adequando-se à realidade social de cada momento.
E não é apenas a Carte de 1988. O Brasil tem dispositivos elogiados mundo afora naquilo que concerne à manutenção do meio ambiente, proteção de crianças, idosos, mulheres e outros temas. É necessário, no entanto, que haja obediência às leis, ao Estado positivado, ponto sobre o qual devemos, todos, fazer a mea-culpa.
Como já dizia o saudoso Ulisses Guimarães, no discurso que trouxe à vida a Carta ora vigente, “A Constituição pretende ser a voz a letra a vontade política da sociedade rumo à mudança”. Mudança esta que está em constante movimento, possibilitada pela própria Norma Maior.
O 5 de outubro de 1988 marcou o fim de vinte longos meses de intensos trabalhos, que foram iniciados com a implantação da Assembleia Constituinte, instalada em 1º de fevereiro de 1987, por determinação do então presidente José Sarney. Foi arquitetada sob a inteligência 500 cérebros, entre senadores e deputados, apoiados por um sem número de assessores e estudiosos.
Houve participação popular de forma intensa, que se manifestou por meio de formulários distribuídos nas agências do Correios. Quase 73 mil sugestões foram feitas pelos cidadãos e outras 12 mil vieram de entidades representativas. O processo constituinte não foi uma simples aventura, advinda daqueles que voltaram a ver as luzes após vinte anos de um blackout social.
Com a promulgação, sobreveio um divisor de águas na sociedade, sendo inaugurado um novo período de liberdades e respeito às individualidades, mas também do cumprimento, sim, de deveres.
Advém daí o Sistema Único de Saúde, exemplo para o mundo inteiro. Se não caminha como deveria, é outra discussão, que não cabe nesta proposta. As minorias, como deficientes, negros, indígenas, dentre outros, passaram a ter o mínimo de esperança em alcançar aquilo que antes lhe era negado. Direito, sim. Nenhum a mais, nenhum a menos. Apenas direito, tal como é, tal como já existe.
Sobrevieram mecanismos para coibir abusos de poder do Estado, a censura à imprensa e às artes foi abolida, prevalecendo, novamente, a liberdade de expressão. O Judiciário resgatou seu protagonismo e, ainda no âmbito jurídico, vimos nascer o habeas corpus, o mandato de segurança e as ações populares. Dispositivos que estão ao alcance de todos, sem distinção.
Lá se vão mais de 30 anos daquela tarde de outubro, mas, ao que se tem vivenciado no país, a jornada ainda é longa e a Carta de 1988 ainda terá que enfrentar muitos desafios e mostrar sua força perante uma sociedade plural. Merece ser debatida, refletida, comentada e até modificada? Sim, oportunamente, como já ocorre. Mas sempre visando ao bem comum e jamais a interesses turvos.
Percalços existem, mas defendo que a força de uma constituição democrática não está em um pedaço de papel. Ela só existe, só pode cumprir sua missão, quando invocamos os seus propósitos em nossas práticas cotidianas. A Constituição é o povo em suas práticas diárias a torná-la efetivamente viva, a torna-la cidadã. Vida longa à nossa democracia, vida longa à nossa Constituição.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.