Um debate travado de forma intensa – ora nos bastidores, ora disseminado junto à opinião pública – tem fomentado muitas reflexões sobre arte. Em alguns momentos essa discussão chega ao seu nível máximo, devido declarações de pessoas com grande notoriedade na sociedade e no próprio meio artístico. Na semana que se encerra, em encontro com alguns amigos, tive a oportunidade de mais uma vez discorrer sobre o assunto, o que me incentivou trazer aqui esse embate.
Primeiramente, entendo que é preciso definir o que na academia convencionou-se chamar de lugar de fala dos sujeitos envolvidos e o conceito que carregam acerca de um dado, digamos, objeto, seja ele tangível ou intangível. Essas premissas definem conceitos que cada indivíduo constrói do contato com sua realidade e busca perpassar a outrem, estando fundadas nas relações de significação e de poder na produção dos discursos.
Da mesma forma, na busca de uma acepção mais moderna da palavra, arte não pode ser vista como uma técnica puramente imitativa, acabada em si, fechada em definições exatas. Contrariamente, dentro dela cabem conceitos amplos e representativos, que devem ser considerados sob o prisma inclusivo da criatividade, de pertencimento de indivíduos dos mais diferentes segmentos da sociedade, conforme sua compreensão de mundo.
É a apropriação do conhecimento que se faz para a reprodução de aspectos da atividade humana, permitindo-se a transfiguração do pensamento, da reflexão, do raciocínio, que dão vida a coisas tangíveis, representadas de forma escultural, plástica, musical, cênica, teatral. Arte é uma manifestação cultural, enraizada em tradições e externadas a partir das compreensões de mundo que se têm.
De forma particular, restrinjo esta abordagem para uma das manifestações artísticas mais presentes e criticadas nos últimos tempos em nossa sociedade: a música. Uma concretização de ideias e pensamentos que embalam os mais diversos momentos de nossas vidas, resgatando sentimentos adormecidos, extravasando aqueles mais efusivos. A musicalidade nos inspira, em qualquer situação, da erudita sinfonia ao molejo do arrocha.
Em dado momento, nessa roda de conversa, lembrei que em setembro do ano passado o compositor e intérprete Milton Nascimento criticou as músicas que hoje são feitas. Para ele, a música brasileira está uma “m…” (termo omitido em respeito ao meu leitor). Uma afirmação um tanto carregada e fora de qualquer senso para quem lutou e foi censurado por um regime opressor e negador da pluralidade, que por vezes lhe tolheu a liberdade de expressão.
Estilos de músicas diferentes, produzidas em geral por artistas vindos das periferias, começaram a fazer sucesso e a ganhar espaço, concomitantemente passaram a ser alvos da crítica mais elitizada e de artistas que outrora defendiam a liberdade de expressão e de pensamento.
Um tanto paradoxal, visto que a arte reflete identidades e está presente no jogo de representações de uma sociedade, ainda que fracionada em um sem número de segmentos nela diluídos. Tais opiniões não passam de puro preconceito, enrustido em quase perfeita retórica que pretende estabelecer critérios do que seja arte. Talvez não vai além de uma simples dor de cotovelo de quem se vê longe dos holofotes.
Gastam tempo para debater, criticar, atacar, impor aquilo que denomino de censura intelectual, fundada em preceitos defendidos por alguns que se acham no direito de dizer rotular com uma tarja de classificação o que pode ou não ser consumido enquanto cultura. Pura perca de tempo, visto que a sociedade por si só se regula. Ficam os bons. Não para mim ou para você, mas bons para quem se apropria do produto artístico e dele faz uso.
A licença poética cabe para todos, do erudito ao popular. Mas há que se respeitar, também, a licença cultural, social, antropológica, religiosa, étnica, de escolhas. Tal como, ironicamente, falava a canção que na América ouvi, “todo artista tem de ir aonde o povo está”, de autoria do próprio Milton Nascimento e Fernando Brant. Verso que soa democracia, liberdade de se manifestar, de buscar a autorealização, de cantar.
Portanto, não há espaço para a elitização da arte, para dela querer se apropriar e lapidá-la conforme conveniência própria ou de seleto grupo. A arte é organismo vivo, está em cada pensamento, é refletido em cada ação. Não precisa, e não deve ser o objetivo, agradar a todos. Em contrapartida, o respeito de todos deve existir para com o artista, cuja arte respeite as normas e preceitos de conduta amplamente aceitas e praticadas.
Querer impor a arte com um padrão definido, fora do qual não pode haver criação, é o mesmo que adotar a linha de censura praticada pelo mesmo regime ditatorial tão atacado pelos artistas da época. Se branco da zona sul, preto da favela, homossexual, alto, baixo, magro, gordo, com boa voz ou nem tanto, o espaço é democrático e seletivo, sobressaindo-se quem possui algum talento para “cair no gosto” do público.
Se há por parte da mídia maior cobertura de algumas representações em detrimento de outras, entendo que cabe um debate, mas sob outra ótica que não a de atacar o que ora é apresentado. Jamais desqualificar, subjugar, classificar como subcultura.
Não posso utilizar minha régua para medir aquilo que é apreciado e aceito por outro, sob a premissa popular de que gosto não se discute. Talvez, no máximo emitir uma opinião, sem ofender. De forma mais extrema, basta que eu não “consuma” determinadas produções artísticas que não se alinham ao meu gosto musical, tal como seleciono apenas aqueles produtos de minha preferência quando vou a um supermercado.
Tudo é arte. Música é arte. Arte é para todos. Afinal, viver não é uma arte?
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letra