*Por Osmar Gomes dos Santos
Símbolo da população marginalizada, que deu vida a uma das mais emblemáticas obras do Realismo no Brasil, os cortiços resistem de pé. Graças à ineficiência das políticas públicas, grande parcela da população brasileira ainda vive em habitações irregulares, grande parte delas em completa precariedade.
O direito a moradia digna, inclusive, está expresso na Carta de 1988. Documento orientador das ações públicas, mas que ainda há muito a ser concretizado para garantir os direitos básicos. Na teoria tudo perfeito, um conjunto de dispositivos que trouxe esperança para a concretização do projeto de país do futuro. Na prática, no entanto, a dignidade da pessoa humana, insculpida na Constituição Federal em vigor, ainda não chegou para todos. Palafitas, casebres, barracos e casas de taipa continuam a fazer parte da realidade de uma nação que não venceu obstáculos básicos para assegurar o mínimo razoável ao seu povo.
As incipientes ações para garantir moradia digna a todas as pessoas está estreitamente ligada a uma série de outros problemas, que revelam o enorme desafio de se alcançar a plenitude dos direitos sociais no país. Enquanto as políticas não avançam, o abismo fica ainda mais profundo.
As mais diferentes pesquisas produzidas retratam uma realidade, no mínimo, preocupante. Se buscarmos apoio no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nos últimos anos, os dados falam por si. Em 2019, somente o déficit habitacional era de quase 6 milhões de moradias.
Interessante verificar que o dado exposto faz referência ao período pré-pandemia, quando muitas pessoas foram despejadas por impossibilidades de pagar seus aluguéis. O outro lado dessa triste realidade se constata na crescente população em situação de rua, que só aumenta, chegando a quase metade dos municípios brasileiros e se agravando nas capitais.
Mas voltemos a focar no tema habitação, sob uma perspectiva da sua precariedade. Esta se manifesta de duas maneiras, pelo menos. A primeira está ligada à falta da titularidade do terreno e do imóvel por quem habita, ou seja, sem o devido registro em cartório. Por outro lado, a segunda trata das condições sociais que cercam pessoas nas áreas mais carentes de infraestrutura pública.
Em regra, mas não necessariamente, as duas situações andam juntas, com a segunda sendo agravada pela primeira. São milhões de ocupações, a maioria com décadas e outras já centenárias, que viram perpassar gerações, mas nunca tiveram o “carimbo” do ofício de imóveis para que garantisse a segurança da titularidade de seus donos.
Retrato de um país que não priorizou a dignidade de sua gente, deixando-lhe faltar a segurança jurídica de um bem essencial para a constituição e fortalecimento dos laços familiares. Sem o documento, a habitação segue irregular, negando ao seu morador uma série de direitos, a exemplo do financiamento imobiliário. São mais de 11% da população nessa condição.
Noutra via, a precariedade de condições físicas, no que diz respeito à estrutura do imóvel é outro fator que leva milhões de brasileiros a, literalmente, meterem os pés na lama ou na poeira diariamente.
Na incipiência de uma política adequada voltada para a moradia, cidadãos são lançados à própria sorte, construindo em áreas que, pelas normas, não poderiam ser destinadas à construção de casas. Áreas baixas, que sofrem alagamentos; ou aquelas de encostas, que periodicamente assistem a deslizamentos. A esse cenário somam-se barracos sob pontes ou as palafitas à beira-mar.
Serviços necessários ao pleno desenvolvimento humano não chegam àqueles que se encontram nos bolsões e cinturões de pobreza, lugares onde as condições são muito precárias. Espaços onde não há, ou há de forma muito irregular, a água, o esgoto, a coleta de lixo, o calçamento de ruas e toda infraestrutura urbanística.
Espaços com baixo alcance do poder público, fazendo com que a total falta de infraestrutura urbanística torne o cotidiano dos moradores ainda mais difícil. Os desafios diários são muitos a serem superados: conseguir emprego; conseguir vaga em creche e escola; educar os filhos; ter acesso a lazer; praticar atividade física; acessar serviços de saúde.
Sobre a precariedade das moradias, além da ausência de infraestrutura, constituem-se em abrigos feitos com restos de madeira, lonas e papelão, unidades sem banheiro, sem documentação ou nas quais mais de 3 pessoas dividem o mesmo cômodo como espaço para dormir.
De puxadinhos em puxadinhos as habitações irregulares vão se amontoando e o problema agravado. Milhões de cidadãos seguem vivendo em total insegurança habitacional. Somente as favelas concentram 16 milhões de pessoas, enquanto outras quase 240 mil estão nas ruas das cidades.
Hoje, os cortiços não deveriam passar de uma leitura em páginas amareladas de uma realidade distante. Contrariamente, ganha cores em um cenário desanimador, certamente “inimaginado” por Aluísio de Azevedo. Basta! Passou da hora de mudar essa realidade.
*Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.