Na comunidade o galo canta bem cedo. Ainda é noite e o tempo frio quando metemos o pé para encarar mais um dia de luta em uma batalha cheia de desigualdades. Aqui tudo é difícil, as condições nos remetem a regredir mais de um século na história. Tanto tempo, tanto dinheiro, nada mudou.
Meu lugar já teve muitos nomes: área marginal, invasão, aglomeração, periferia, favela e, mais recentemente, comunidade. Nome mais glamoroso para se fazer a leitura no prompt em horário nobre. A verdade é que não importa o título que se atribua, a realidade aqui não é para amadores.
O próprio fato de morar em uma comunidade já é um empecilho que enfrentamos lá fora. Estudar, trabalhar, namorar, praticar esporte, desfrutar de um lazer. Coisas comuns e normais para grande parte das pessoas, mas não para quem vem da quebrada, codinome que também usamos para o nosso gueto.
A discriminação está em cartaz todos os dias e nos deparamos com ela sem qualquer cerimônia, em uma trama que de ficção não tem nada. Dói na pela, dói na consciência, dói na alma. Quando se é preto, a discriminação é ainda mais latente. Se mulher, então, nem se fala.
Para agente sobreviver, como se costuma dizer, “tem que descer pra pista”, tem que sair todos os dias e botar a cara a tapa para alcançar o lugar ao sol. Na correria do dia a dia vemos praças, quadras, escolas boas, estrutura de esporte e lazer. É o único momento que sabemos o que é Estado de verdade.
Lá, na comunidade, não tem a praça, a quadra, a escola, o posto de saúde, o asfalto, o saneamento. O Estado que conhecemos é do cano gélido que cospe fogo nos mais variados calibres. Lá, ele sobe o morro de farda. E não é para fazer ação social. A violência é um filme com reprise diária na vida daqueles que ali se aglomeram nos disputados metros quadrados.
Não quero ser taxado de coitado, não quero ser visto como vítima da sociedade. Aqui não tem “mimimi”, não se trata de um discurso derrotista, determinista, vitimista. Mas como esperar que o filho do pobre, preto e favelado, que nasce com os pés na lama, um dia possa vestir o terno, a gravata ou o jaleco? De fato, acontece, vez por outra temos algumas dessas façanhas. Mas não se engane, não é a realidade.
É difícil! Lidar com a fome, com a pobreza, com a falta de referências, com a falta de oportunidade, com a falta, com a violência, é muito difícil e não é para qualquer ser humano. É preciso tirar forças, não se sabe de onde, para superar uma realidade que tende a te puxar para o obscuro submundo do crime. Para este, não faltam “oportunidades”.
Não deveria ser assim. As condições deveriam ser iguais para todos. Li isso na escola, em um livro de capa verde e branca, datado de 1988, que deveria traduzir a passagem de um período de opressão para o de pleno desenvolvimento, econômico e social.
Vejo isso, também, no potencial de nosso país, nas nossas riquezas, na nossa gente. Bom que se diga, mesmo que muitos aqui não venham a vestir terno ou jaleco, seguramente a maioria deles já são, por natureza, pessoas de bem. Pedreiro, carpinteiro, pintor, lanterneiro, gari, doméstica, operacional. Pessoas que carregam o fardo que a honestidade parece ter passado a ser, mesmo em condições tão desiguais.
São pessoas dignas nos empregos que conseguem, mesmo tendo que acordar 3h30, 4h, da manhã e chegar em casa às 22h. Mesmo não acompanhando o crescimento dos filhos. Por falar em família, são poucas as lembranças que tenho do meu pai, geralmente nos fins de sábado e aos domingos. Na semana, a rotina só permitia o contato quando eu estava adormecido na cama, na sua saída ou na sua chegada.
Sem demagogia. Não dá para dizer que as condições da minha gente aqui, são as mesmas de quem está lá no “asfalto”. Não dá para tapar o sol com a peneira e achar que somente a força de vontade própria vai transformar o pobre e favelado em alguém que vai brilhar profissionalmente e devolver os “louros” à nação. Basta ver onde estamos no dia a dia na estrutura social.
A mesma telinha que chama minha quebrada de comunidade, que prega a igualdade, reserva, quase que exclusivamente, espaços de submissão a pessoas de cor como eu. Sou porteiro, motorista, garçom, doméstica, babá, zelador, serviços gerais, ambulante, flanelinha, bandido. Nesses papeis, sou protagonista de primeira hora, pois minha cor parece superar qualquer outra condição para atuar.
Quero ser visto com respeito, como cidadão, cujas oportunidades dadas me permitirão fazer as escolhas para a minha vida. Chamo isso de direito de ter o direito a escolher o caminho a seguir. Quando essas oportunidades não são dadas, na maioria dos casos resta apenas uma opção.
Enquanto nada muda, continua a luta diária do secular cortiço de Aluízio. A vida segue, assim como o esgoto que corre viela abaixo a céu aberto rumo a um destino, tal como o nosso, incerto.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras