Não é de hoje que se costuma dizer que a saúde do Brasil está na UTI. Mas um fenômeno um pouco mais recente vem ganhando corpo e preocupando operadores do Direito em todo o país, que é a judicialização da saúde. Relatórios e estudos país afora têm proporcionado um raio-x dessas problemática que envolve sociedade, poder público e empresas na área de saúde suplementar.
O quadro da saúde apresenta a pintura de uma sociedade doente, emoldurada por políticas públicas ainda poucos eficientes, ações predatórias de empresas privadas e até mesmo a judicialização irresponsável por parte de alguns. Isso fez com que chegássemos ao fim de 2017 com mais de 1,5 milhão de processos relacionados à saúde.
Esse cenário é, também, reflexo da crise financeira, da falta de recursos da população, do aumento da expectativa de vida, das falhas nas políticas públicas de saúde, dos cortes orçamentários. Convém lembrar que não se trata apenas de ações contra operadoras de planos de saúde, como podem pensar alguns.
As ações ligadas à saúde envolvem questões como fornecimento de medicamentos, tratamentos médico-hospitalares, ressarcimento ao SUS, convênios médicos com o SUS, planos de saúde, negativas de atendimento, doação de transplante e erros médicos. Cada setor ligado ao tema naturalmente defende seu ponto de vista e seus interesses, mas todos são unânimes em concordar que o Brasil precisa aperfeiçoar o sistema de saúde.
Na ponta dessa cruzada, mais uma vez está o Judiciário a exercer um papel por demais necessário sobre a tênue linha do direito que o tema envolve. Em razão disso, o Judiciário termina por receber muitas críticas, muitas delas em razão da falta de capacidade técnica dos magistrados sobre o tem para decidirem sobre as demandas.
Uma coisa é certa: a magistratura não tem vacilado e nem se omitido da responsabilidade que chega às suas mãos. Naturalmente, por se tratar de um tema tão delicado, que diz respeito em última análise à própria vida daquele que move a ação, percebe-se que as decisões são favoráveis ao demandante. Mas defendo que isso não pode ser um ponto fixo de análise para dizer se a decisão está ou não em conformidade com o aludido padrão técnico.
As agências reguladoras também precisam aperfeiçoar sua forma de atuação. A ANS afirma que as ações mais recorrentes são relativas a questões assistenciais para tratamentos já regulados pela entidade. Essa afirmação denota que pode estar havendo falta de respeito às regras emanadas pelo órgão responsável pela regulação da saúde suplementar no Brasil, levando os usuários de planos a demandarem aquilo que já deveria ser feito como uma obrigação das operadoras.
A ausência de registro de medicamentos e a exclusão de outros na lista do Sistema Único de Saúde também contribuem para agravar a situação e aumentar os gastos decorrentes das ações judiciais. No Brasil, o procedimento de registro de medicamento leva anos e as decisões judiciais tem obrigado o fornecimento desses medicamentos mesmo ainda não tenham sido devidamente liberados para uso no país.
Exemplo recente trata do uso do Canabidiol, substância extraída da maconha e que já tem sua comprovação de uso com fins medicinais em vários países. Somente após longos debates, jornadas judiciais, apelos de diversos setores sociais, é que a Anvisa decidiu retirar a substância da lista de proibidas e permitir o uso da mesma.
A burocracia desnecessária custa caro ao país. Medicamentos ao entrar para a lista de fornecimento do SUS chegam a ter seu preço reduzido mais da metade, mas a lentidão faz com que vidas fiquem em risco e o Judiciário tenha agir para garantir o recebimento do medicamento pelo paciente.
Os gastos somente da União, de 2010 a 2016, que chegou à casa dos R$ 4,5 bilhões, poderia ter tido uma redução significativa apenas com o registro dos medicamentos fornecidos. Somente com medicamentos esse gasto, somente pelo Ministério da Saúde, chegou acerca de R$ 1 bilhão.
Nesse cenário em que a única certeza que gera consenso entre todas as partes envolvidas é a necessidade do estabelecimento de uma séria política de saúde, na qual sejam definidas novas regras para o funcionamento desse complexo sistema, é hora de passar do debate à prática.
Ao mesmo tempo em que o Sistema de Justiça necessita aperfeiçoar suas ferramentas e qualificar seu corpo de pessoal para um atendimento mais adequado dessas demandas, os demais atores envolvidos na problemática também precisam sentar e definir rumos de atuação prática para racionalizar o uso do Judiciário.
Não será possível pôr um termo à judicialização da saúde. Mesmo sem querer ser determinista, arrisco dizer que ações dessa natureza sempre haverá. Mas é preciso discernir a judicialização responsável, daquela meramente oportunista, predatória ou, ainda que oportuna, possa ser evitada.
O cenário pede socorro e os caminhos já foram apontados em dezenas de encontros, seminários, audiências públicas. É preciso, agora, caminhar. A saúde é direito fundamental, sedimentado em nossa Carta Magna, e precisa ser tratado com a mesma importância com que é acrescido no texto constitucional.
Osmar Gomes dos Santos
Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís
Membro das Academias Ludovicense de Letra, Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.