A discussão sobre uso de gravação ambiente de um interlocutor pelo outro voltou ao centro dos debates esta semana. Considerar ou não como elemento probatório no processo a gravação de imagens ou áudios de outra pessoa. Respeitando a posição contrária, bem como a competência adstrita a cada poder, permito-me, na qualidade de cidadão, fazer algumas considerações.
Já fui delegado de polícia. Sou magistrado, atuando na esfera penal. Mas, sobretudo, sou cidadão, que pensa, quer e age por uma sociedade mais fraterna, mais justa e igualitária. No sistema positivado, em regra, temos que nos curvar às leis, que regem toda sociedade. Noutra via, como se bem sabe, é preciso que as normas acompanhem a própria evolução social.
A este estamento social, a norma precisa vir para dar amparo, tipificar condutas, dar estabilidade às relações sociais. Assim, a materialidade dos fatos deve servir para amparar uma investigação, um inquérito policial. A possibilidade de não levar em consideração uma gravação, que possa servir de prova, por um dos interlocutores sem prévio conhecimento da outra parte contra um suposto transgressor não me parece razoável.
A mudança está no bojo do pacote anticrime, que também traz algumas mudanças desejadas pela sociedade, a exemplo do aumento de pena para algumas condutas tipificadas. Mas, neste ponto, entendo que deveria haver um pouco mais de alinhamento com a realidade em que vivemos.
Vemos a possibilidade de muitos daqueles crimes que acontecem na intimidade ficarem sem uma apuração devida, simplesmente porque um elemento principal pode não ser devidamente qualificado como uma prova lícita.
Imagine uma situação de ameaça em que a mulher é coagida, subjugada, agredida. Muitas, posso dizer sem medo de errar, na quase maioria das vezes, uma gravação, uma mensagem, constitui indício mínimo para a instauração de um inquérito policial e até a aplicação imediata de medidas protetivas.
Quantas não têm sido as mulheres vítimas de agressores vorazes, que evoluem das ameaças por ligações ou mensagens para a concretização da violência em forma de feminicídio? Nossas mulheres e crianças ainda sofrem diariamente nas mãos de violentadores contumazes, que tentam se esconder no anonimato.
É um daqueles crimes que, na sua grande parcela, acontecem da porta para dentro, entre quatro paredes, na intimidade familiar e longe dos olhos da sociedade. Estupro, abusos, estupro de vulnerável, tortura psicológica e até física.
Há também aqueles crimes de injúria racial e racismo, ainda muito comuns em nosso cotidiano. Casos que só ganham notoriedade, e por conseguinte são apurados, após a divulgação de vídeos e áudios gravados por quem sofreu ou presenciou a agressão.
Se a gravação não puder constar como indício mínimo de prova do delito, qual procedimento para casos como os sobreditos?
– Um instante, preciso dar um pulinho aqui na vizinha. Já que não tenho tua autorização para gravar, vou pedir que ela venha ser testemunha ocular do fato delituoso em curso. Pronto, podemos retomar! Onde foi que paramos?
Naturalmente uma situação como esta nem mesmo em um mundo idílico. Nem na melhor das utopias sonhadas por Thomas More poderia ganhar concretude.
Ademais, note-se que a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admite a captação ambiental por um dos interlocutores como prova de infração criminal sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público. Basta restar comprovada a integridade da gravação.
Ou seja, entende-se que sobre aquela suposta prova haverá a devida análise, se necessário a perícia técnica, para buscar a verdade dos fatos. Inclusive para provar a própria inocência daquele que ora figura como acusado. Recordo-me que em episódio recente o suposto violentador passou a ser vítima quando divulgadas imagens e áudios da moça que tentava acusa-lo.
Não fosse aquele elemento probatório, provavelmente seria execrado pela opinião pública e poderia acabar no “banco dos réus”, respondendo por crime que restou comprovado não tê-lo praticado.
Apesar de concordar e respeitar que o devido processo legal deva ser respeitado, penso que o mesmo deveria estar sempre em sintonia com a evolução social. Penso que na persecução penal, na busca da verdade real, toda possibilidade de prova deva ser considerada. Mesmo na intimidade, quem fala o que bem deseja, deve responder pelos seus atos.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras