*Por Osmar Gomes dos Santos
Venho me dedicando ao tema pobreza há algum tempo, pois o considero um dos principais a serem exaustivamente debatidos em nossa sociedade. Muito se fala de um país do futuro, do progresso, mas que, para além da retórica, a conjuntura aponta caminhos cada vez mais obscuros.
Ao afirmar que a pobreza torna o homem escravo, vou para além da servidão constatada no período colonial, na qual tentou-se primeiramente submeter os nativos, mas a alternativa foi trazer os escravos africanos. Esta escravidão se dava com base na força física, sob pena do açoite.
A escravidão de que trato aqui é aquela moral, que se processa no plano psicológico do indivíduo. Uma servidão a qual o próprio sujeito se submete para ter que colocar minimamente um pão na mesa da família, desafio cada dia maior, diga-se.
Esse tipo de expropriação da mão-de-obra, do suor, se dá em contraste com os altos lucros de patrões e empresários. Sob o pano de fundo de um salário mínimo constitucional, paga-se o soldo “rasteiro”. Diante de mais de doze milhões de desempregados, impera a lógica do “se tu não quer, tem quem queira”.
Eis que o cidadão, pai de família, especialmente nas grandes cidades, submete-se a acordar às 03h, sair de casa às 04h, pegar três conduções para atravessar a cidade e chegar no horário no serviço. Bater ponto, abrir loja, organizar a rotina do dia.
Dia que para ele não existe, posto que regressa para casa por volta das 20h, 21h. Come, dorme e a mesma rotina no dia seguinte. Quando sai, os filhos dormem; quando retorna, já estão na cama. Mal tem tempo para assistir a um programa de TV com a família, quiçá ver os filhos crescerem.
No fim do mês, pouco mais de mil reais, que mal cobre despesas diárias, mas é o que tem. Agradece, portanto, por ainda ter uma oportunidade de “defender” sua dignidade na dura e pesada vida de uma típica cidade brasileira.
Cidade de contrastes, que muitas vezes implica a esses trabalhadores e trabalhadoras mentir sobre o bairro onde moram para conseguir a vaga de emprego. Se mora em favela, é discriminado e não qualificado para oportunidade; se mora longe, necessita pegar mais conduções, gerando mais despesas para a empresa.
Endereço atualizado, emprego garantido, vida que segue. Muitas vezes a moradia fica em bairro pobre, por entre becos e vielas, sem infraestrutura, sem saneamento, sem condições para uma vida decente.
O cenário da vida que se passa é praticamente a mesmo do cortiço, triste realidade constatada há mais de cem anos por Aluísio Azevedo, mas que ainda é a de milhões de brasileiros.
Assim como o retrato do cortiço, permanece viva a frase “Brasil, País do Futuro”, do austríaco Stefan Zweig, radicado no Rio de Janeiro em meados do século passado para fugir do nazismo. Tão atual que ainda podemos lê-la na íntegra, sem pôr e nem tirar uma vírgula, dado futuro que nunca chega.
É a literatura ganhando contornos de realidade exponencialmente, com a própria vida que passa diante dos olhos. Meus, seus, do pobre trabalhador, dos grandes empresários, dos nossos governantes.
Trabalhador este que se permite à condição degradante para garantir alguns poucos reais ao fim do mês. Que, contextualizando, pouco poderá fazer diante de uma inflação galopante. Cada vez mais dá para pôr menos na mesa.
É o homem realmente livre? Dono de si e seu destino? Ou seria ele, dentro de uma nova ótica de um capitalismo predatório apenas um escravo de si próprio, de uma vontade forjada sobre uma falsa sensação de liberdade que sempre o leva à mesma deplorável condição humana?
A constatação de que a pobreza força o homem livre a agir como escravo não é minha, mas de Hannah Arendt, ainda no século XX. Ela se interessou e se debruçou sobre os estudos da política por entender que seria uma via possível para o pluralismo, a inclusão do outro.
A constatação que faço hoje, não é a de que ela estava errada, absolutamente. Mas a de confirmar sua certeza e, ainda assim, ver que pouca coisa mudou desde os tempos do cortiço. Bom fosse que os teóricos que são referências nas academias pudessem ser “praticados” no dia a dia.
Tal como há pouco mais de um século, esse cidadão que se permite escravizar em troca de um punhado de reais que mal acalenta suas necessidades básicas, tem, predominantemente, a cor preta ou parda e ocupa os espaços urbanos em condições mais inóspitas possíveis.
É o mesmo cidadão que se viu no fogo cruzado nesta semana, em uma operação policial no Rio de Janeiro, na Vila Cruzeiro, e que vitimou mais de vinte pessoas. Era para ser mais uma manhã como tantas outras na vida de centenas de “escravos”, acordar, passar um café, comer um biscoito ou um pão dormido e tocar rumo ao trampo.
No entanto, os estampidos de fuzis de grosso calibre interromperam muitos planos naquela madrugada. Não estou a fazer juízo de valor sobre a operação, mas apenas ressaltando que ali está, também, o cidadão de que falo neste curto rascunho.
O Brasil segue. De um lado um Brasil rico, pujante, que come caviar, passeia de lancha, viaja ao exterior e anda de helicóptero ou de jatinho. Do outro, um país que não dignifica seu cidadão, onde cada dia se mata um leão, no qual cada qual se vira como pode para sobreviver.
Que país é este? Já perguntava o cantor e compositor Renato Russo no fim do século passado. Diante da realidade, embora sendo otimista, fica difícil acreditar no futuro de uma nação na qual grande parte de sua gente, por necessidade, ainda precisa anestesiar sua mente para escravizar sua mão-de-obra.
*Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís. Escritor; Cronista; Poeta. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.