Esta semana, ao assumir o comando da maior e mais poderosa nação sobre o globo, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que a democracia prevaleceu. Naturalmente que a fala cabe como um recorte, dentro a um contexto que marcou a disputa eleitoral norte-americana com intensos atos de violência.
Notadamente a fala também pode ser considerada uma mensagem ao ex-mandatário da Casa Branca, Donald Trump, mas ela expõe muito além do que fora retratado nas manchetes de jornais e tabloides mundo afora. Desde o século XIX, a democracia americana tem sido fruto de estudos e referência, principalmente, para as sociedades ocidentais.
Alexis Toucqueville, na célebre obra “Democracia na América”, que o elevou a categoria de notório pensador, classificou o modelo como uma radical democracia, na qual, todos, com exceção dos escravos, tinham direitos e deveres em igualdade perante a lei. Com exceção da cor da pele, não importavam a classe social ou o grau de estudo. Algo que soava fantástico para a época.
Trazendo para nossos tempos, é importante destacar que a democracia exige, por outro lado, um grau de amadurecimento, engajamento, participação, sabedoria e aceitação do status quo, afinal, instituído, em regra, pela vontade da maioria. É uma espécie de jogo, com mecanismos próprios, que permite avançar em dado momento e recuar em outros. É como se existisse um sistema de freios e contrapesos, que impõem limites à atuação individual.
Justamente neste ponto que chamo atenção para uma espécie de polarização consolidada durante o período eleitoral na terra do Tio Sam. Lados opostos que, ao longo do processo eleitoral, se comportaram quase que à margem daquilo que se convencionou chamar de modelo para o mundo.
Esses extremos ficaram claros na fala do novo mandatário. Biden escancarou problemas estruturais e ainda latentes na sociedade americana. Reconheceu que ainda existem posições extremistas, racismo exacerbado e institucionalizado no Estado, além do supremacismo branco, cujos seguidores internalizam e agem com base em questões que vão além da cor da pele.
Não se pode falar em unificação do que não se apresenta em partes separadas. Assim, falar em unir a nação pressupõe, dentro de um raciocínio lógico, afirmar o racha que atualmente se instaurou de forma mais aguda no seio da maior democracia do mundo.
Apesar de historicamente conviverem em certa harmonia, unificar pensamentos destoantes entre democratas e republicanos não será tarefa fácil para Biden. Em meio a esse turbilhão político, ainda está presente a ameaça do novo Coronavírus como fator agravante.
Denota-se, claramente, que essa tal democracia, falada aos quatro cantos e vendida como um modelo ideal, pode ter sofrido cisões profundas que possivelmente apresentarão rupturas em novos momentos de um futuro próximo. Melhor que não!
Essa preocupação, sem qualquer sombra de dúvidas, paira sobre os americanos. Como crer que a democracia realmente venceu, quando se tem uma nação dividida, tendo grupos radicais e extremistas em ambos os lados, que, ao que parecem, são capazes, de inverter a ordem social para querer impor a sua “própria democracia”?
Neste momento, é preciso questionar de que democracia estamos falando, seja além-mar, ou em nossos próprios limites territoriais. A democracia tem como pressuposto o estabelecimento de um Estado positivado, com normas e regramentos capazes de orientar a nação e, ao mesmo tempo, devolver aos seus concidadãos os direitos que lhes competem.
Dito isso, é preciso considerar a livre participação popular, outro requisito básico, capaz de garantir a livre manifestação de pensamento, de opinião, de engajamento nos debates presentes na ordem do dia, voltados para melhoria do bem comum.
O que isso tem a ver com o Brasil? Muito! O mesmo filme presenciamos recentemente em nosso país, em nossa ainda juvenil democracia, quando o mesmo modelo possibilitou a eleição de alguém que não teve a capacidade de unificar a nação. Pelo contrário, alguém cujas práticas têm aprofundado o abismo entre pensamentos divergentes que deveriam dialogar, mas que, cada vez mais, se afastam.
E é bom que se diga, não apenas o Brasil tem a ver com o que ocorre do outro lado da Linha do Equador. Pelo observado nos últimos meses, talvez seja possível afirmar que a democracia norte-americana não prevaleceu. Não neste momento. Poderia dizer que está passando por um teste de fogo, cujo resultado será vital para todas as sociedades democráticas.
A forma como a política externa, em diversas áreas (militar, econômica, geográfica), será conduzida nos primeiros meses, dará uma demonstração desse processo de reconstrução de uma democracia que saiu fragilizada de um intenso processo eleitoral.
Para completar o cenário, o bombástico Donalp Trump deixou a Casa Branca pela “porta dos fundos”, mas deixou um aviso que voltará, de alguma forma. Essa afirmação deixa no ar muitas interrogações e serve como combustível para que seus apoiadores mantenham os ânimos acirrados por um bom tempo. O tempo dirá!
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.