Alcançamos o tão esperado século XXI sob a expectativa de que viraríamos a página de um período histórico marcado por contradições advindas da diversidade de pensamentos e ideologias políticas. Vivemos duas grandes guerras mundiais, quase uma terceira, além de um sem número de conflitos armados em várias partes do mundo. Em cem anos, o homem conseguiu produzir ódio, por meio de armas, como nunca antes na história humana.
Terminado o maior conflito bélico, as armas de destruição em massa deram lugar, pelo menos no papel, à tolerância entre os povos. Era 10 dezembro de 1948, quando veio ao mundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento que estabeleceu uma série de diretrizes a serem seguidas por todas as nações, tendo como primazia o respeito à dignidade da pessoa humana.
A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), sob a presidência de Eleanor Roosevelt, viúva do ex-presidente dos EUA Franklin Roosevelt, aprovara a carta que veio a se tornar uma referência para todas as nações. Entusiasta do tema, Eleanor participou diretamente da redação do texto, cuja finalidade era sepultar o horror produzido durante os dois conflitos mundiais.
Pelo menos em tese, especialmente em nosso regime político, consolidamos alguns conceitos imbuídos no documento. Avançamos na garantia dos direitos nas relações trabalhistas, praticamente eliminando a escravidão e o trabalho forçado. O povo tem sido a base da autoridade estatal, podendo escolher seus representantes e todos, em regra, tem acesso à Justiça e tratamento igual perante a lei.
Essas são algumas conquistas decorrentes da força do documento, que deu as diretrizes para nossa constituição, notadamente no que tange aos direitos e garantias fundamentais. Verifica-se progresso, ainda, no direito à vida e à liberdade, inclusive de expressão, garantindo a privacidade e a preservação da honra. Mais recentemente, o direito à propriedade tem ganhado espaço nas garantias constitucionais do cidadão.
Mas, embora tenha permitido a disseminação de valores e a imposição de limites a condutas de milhares de chefes de estado, ao se debruçar sobre os acontecimentos globais dos últimos 70 anos, verifica-se que ainda estamos longe do ideal pretendido. A ideia de incorporar ações positivas de forma plena não passou de retórica, que ao cabo parece mais ter atendido a interesses momentâneos do capital financeiro, ávido por estabilidade social no pós-guerra.
A inspirada Eleanor chegou a se referir à Declaração como a magna carta para toda a humanidade. Mas quando se analisa o contexto no qual ela própria vivia, verifica-se um profundo abismo entre discurso e prática, afinal, os EUA, nação da qual ela foi primeira-dama de 1933 a 1945, ainda viviam submersos em um regime segregacionista, fundado na diferença de cor.
Martin Luther king se tornou um mártir em 1968, vinte anos após a Declaração, justamente porque travou intensa luta contra esse intolerante regime de discriminação racial dos EUA, que perdurou oficialmente até a década de 1960. Convém lembrar que ainda hoje é intensa a luta do cidadão negro naquele país para ter respeito e direitos garantidos.
Esse paradoxo não se resume ao exemplo dos EUA, posto que tantas outras nações estiveram mergulhadas em regimes intolerantes no período pós guerra. Na África, foi instituído o apartheid, levantes ditatoriais foram vistos mundo afora, inclusive aqui no Brasil. Regimes que retiraram dos seus povos a autonomia, a liberdade, a possibilidade de um desenvolvimento pleno e feliz.
Embora traduzido em mais de 500 idiomas, ter servido de fundação para tratados e de espinha dorsal de inúmeras constituições, incluindo a brasileira, o documento por si só não tem força de mudar a realidade, isso cabe aos governantes. Precisam estabelecer políticas, seja internamente ou além-fronteiras, para assegurar os direitos expressos na Declaração. Por outro lado, os cidadãos precisam estar cientes de seus direitos e deveres, exercitando-os cotidianamente.
Uma dos temas mais debatidos sobre o globo atualmente gira em torno da questão dos refugiados, que, segundo últimos dados divulgados pela ONU, atinge cerca de 250 milhões de pessoas. As razões são as mais diversas, com maior destaque para a fome, a seca, as guerras e perseguições política e religiosa. Então questiono: qual o esforço dos chefes de estado, notadamente das grandes nações, em resolver essa problemática?
A resposta é desanimadora, eis que os líderes mundiais, ao invés de buscar soluções, estão cada vez mais se isolando e impondo barreiras. Nações viram as costas a cidadãos sem nacionalidade, sob a lógica perversa do “cada qual com seus problemas”. Posição essa que por sua vez é absorvida pela população desses países, notadamente os europeus, fazendo crescer o ódio e a xenofobia.
Por falar em papel da sociedade, não vislumbro outro caminho para a plena garantia dos direitos humanos se estes não forem, também, praticados no dia a dia por pessoas simples, como eu e você. Não cabe apenas aguardar as soluções de nossos governantes, mas agirmos na relação com o outro com espírito de fraternidade. Isso deve estar acima de questões de cor, de religião, de opção sexual, de opinião política ou qualquer outra diferença.
Devemos praticar os direitos
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís.
Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências , Artes e Letras.