Há muito se sabe que a sociabilidade é uma característica inata ao ser humano. Vivemos em sociedade e isso implica viver em harmonia, ajudar o próximo, respeitar o espaço do outro e, dentro de uma concepção mais moderna, obedecer as normas de conduta estabelecidas socialmente. Tudo isso, no entanto, parece estar perdendo sentido quando trocamos de posição social e assumimos um volante, passando a exercer o papel de motorista.
Muito se fala que o trânsito, mais notadamente nas vias urbanas das grandes cidades, vem ficando a cada dia mais violento. Peço vênia para discordar dessa crença, ao passo que, após um exercício de reflexão e baseado em tudo que se vê no dia a dia, constato que o trânsito nada mais é do que, como no bom português, um sujeito passivo, que apenas sofre a ação do verbo, no caso nós.
O trânsito somos nós quem fazemos, não os carros ou as vias. Racionalidade ou irracionalidade, generosidade ou egoísmo, são atitudes que corroboram para caracterizar o tipo de trânsito que teremos em nossa cidade. Quem está ficando cada dia mais violento não é o trânsito, mas nós mesmos, ardentes em nossas fogueiras de vaidades, envoltos em nossos muros que só permitem enxergar a própria razão, mesmo quando esta sequer existe.
Não nos colocamos no lugar do outro, não sentirmos a dor do outro. Vivemos a lógica do “meu tempo é sempre mais precioso do que o daquele que está ao meu lado”, motivo pelo qual não lhe dou passagem. No mesmo ímpeto de disputa, e ainda que tenha que transpor uma linha contínua, lanço-me a frente do próximo para ficar mais próximo do semáforo. Assim, vamos destilando gratuitamente aquilo que de pior existe em nós e nos afastando daquilo que nos faz humanos. E segue adiante o caminhão de lixo, como bem diz uma parábola popular.
Podemos constatar nossa pequenez nas mais diversas situações de conflito no trânsito. Brigamos por motivos fúteis, bobos, muitas vezes sem razão, pois deveríamos, em regra, obedecer as leis de trânsito. Ainda que tivéssemos razão, qual o motivo para a briga? Parece vivermos em uma sociedade doente. O nível de estresse e ansiedade faz com que despejemos nossas frustrações e fracassos no próximo quando estamos atrás de um volante. Ou mesmo deixamos saltar nossa vaidade, arrogância e egoísmo no afã de subjugar o outro cujo carro, em tese, é inferior.
As ruas e avenidas deveriam ser, e são, um lugar para facilitar nossas idas e vindas ao trabalho, ao encontro dos amigos ou dos familiares na condução de um bem que deveria, e deve, contribuir especialmente para elevação da nossa qualidade de vida. No sentido oposto, estamos transformando nossas vias em campos de batalhas, com algumas exceções. É o carro mais caro, carro mais rápido, o melhor motorista, a buzina mais alta, o motor mais potente, a prevalência do mais forte, ávido a conquista do troféu estupidez, sobre o mais fraco.
Vemos de forma corriqueira a “lei do mais esperto” prevalecer sobre o bom senso e sobre as regras de civilidade, fazendo com que no trânsito das grandes cidades o jeitinho brasileiro seja vivenciado com toda sua pujança e virilidade, comportamento muitas vezes eivado de machismo. Nesse espaço de disputas não há que se falar em regras de boa convivência e generosidade, elas são praticamente esquecidas e dão espaço à intolerância, tão logo o motor é acionado.
Ao darmos partida neste bem tão essencial, muitas vezes conquistado com enorme sacrifício, parece que desligamos o botão do modo social e entramos no modo tensão, aptos ao conflito. Depois do próprio carro, a buzina é a arma mais utilizada para atingirmos nosso oponente, ou mesmo nos defendermos de seu ataque. É uma buzina daqui, outra de lá, vira um “buzinaço” que parece não ter fim. Ato contínuo, baixam-se vidros e a troca de gestos e “gentilezas” constituem um show a parte.
Um carro é lançado sobre o outro, motoristas param, descem, batem boca, vão as vias de fato. O palco está montado, mas não há espaço para a comédia nesta peça da vida real, encenada em um espaço com grande probabilidade de que o desfecho se constitua em tragédia. Daí porque não defendo o porte de arma indistintamente, sob pena de termos um banho de sangue a cada novo desentendimento com o pretexto do “matei para não morrer”. E pensar que tudo começa com uma seta não acionada, uma ultrapassagem apressada, uma freada brusca.
Ah, engana-se aquele que pensa que este texto não se encaixa à sua realidade. Seja no polo ativo ou passivo, todos nós estamos sujeitos a viver situações como as aqui relatadas. Caminhões de lixo cruzam nossos caminhos a todo instante, razão pela qual precisamos resgatar a verdadeira função social do trânsito, repensando hábitos e posturas ao volante e, sobretudo, conduzirmos nossos veículos respeitando as leis de trânsito e as regras de circulação.
O trânsito nada mais é do que uma extensão da nossa vida, espaço no qual deve se cristalizar o direito fundamental de ir e vir. Outro dia ouvi de um sábio e velho amigo que devemos conter nossos impulsos, oportunidade que me recordei de uma importante campanha do Ministério Público que dizia: “Conte até dez: a raiva passa, a vida fica”. A sabedoria nos ensina que gentileza gera gentileza, portanto, dê a preferência!
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís; Membro das Academias Ludovicense de Letras, Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.