*Por Osmar Gomes dos Santos
Não apenas a classe social é um fator discriminatório no Brasil, como sugerem alguns pouco informados, embora também seja um critério de separação entre os abastados e aqueles que tiveram poucas oportunidades.
No entanto, o fator “cor da pele” segue, sem sombra de dúvidas, como o maior desafio a ser superado quando o assunto é discriminação. Passado mais de um século – há cerca de 130 anos –, ainda convivemos com um racismo estrutural que nos envergonha diariamente.
A lógica do “este espaço não é para você” permeia não apenas o imaginário, mas se reflete no comportamento, nas atitudes, nas falas. Seja no mundo esportivo – como temos visto nas competições sul-americanas –, seja na nossa nua e crua realidade de todos os dias.
Faço aqui um relato pessoal, de quem ainda vive situações discriminatórias diariamente. Só quem já sentiu literalmente na pele o peso da discriminação causada pelo vil e excludente racismo nos mais diversos espaços sociais sabe o quanto isso afeta a essência e a dignidade.
De infância pobre a juiz, minha trajetória foi permeada pelos mais diversos desafios. Sempre sob o olhar daquele “julgador” social, que enxerga o menino pobre, de cabelo pixaim, às vezes sem camisa e de pés no chão, como uma ameaça constante.
Esse foi o retrato de algumas fases da minha vida. Recém-chegado de Cajari-MA, residindo em uma área de invasão, dividia espaço com toda a família sob estacas denominadas de palafitas. Os bicos – vigiando carros ou vendendo lanches para ajudar em casa – não eram vistos como um labor digno, assim como ainda não são nos dias atuais.
Quando falo sobre cor e classe social, embora caminhem juntas, cada qual possui suas nuances. A cor é preponderante. Ponto. A classe e até mesmo a posição social podem ser relativizadas. Vejo isso quando me deparo com pessoas desconhecidas, cujos olhares apressados já me julgam pela cor da pele.
Quem me conhece sabe da humildade que carrego e do meu desapego a qualquer tipo de ostentação. Por isso, gosto de vestir um simples calção e uma sandália de dedos para ir à padaria ou ao supermercado. Essa escolha, somada à minha cor, é um prato cheio para que algumas pessoas virem a cara ou escolham outro corredor para transitar.
Entretanto, quando sou abordado por alguém que me conhece e sou chamado educadamente de “doutor Osmar”, quem está por perto logo muda o semblante. Se sou apresentado como juiz – posição da qual me orgulho, mas que não uso para sobrepor ninguém –, os sorrisos se abrem, como se uma senha de aceitação social fosse desbloqueada.
Esses acontecimentos do meu dia a dia me levam a crer que essa é a realidade do Brasil e, arrisco dizer, de toda a América Latina. Sofremos duplamente: pela cor da pele e pela classe social na qual não escolhemos nascer.
A tal “evolução social” parece ainda não ter atingido um patamar que permita colocar todos os seres humanos em condições de igualdade. Alguns ainda vêm de “fábrica” com um rótulo de classificação que os caracteriza como um subtipo humano de valor inferior, condenados a viver em escassez e com poucas oportunidades de ascensão.
Ouvimos desde pequenos, não apenas com os ouvidos, mas com os olhos e até no contato impessoal da indiferença, o mantra: “este lugar não é para você”. Alguns conseguem se livrar desse fardo, todavia são poucos.
Fato é que a maioria ainda vive em condições desumanas, seja na perspectiva econômica, com o acesso restrito a bens e serviços; seja na esfera social, diante do abismo construído por uma sociedade racista e discriminatória.
Há quem diga: “Mas há negros ricos, bem de vida”. Sim, é verdade. Como mencionei acima, alguns romperam a bolha. Mas qual é a proporção?
Faço um desafio a você, leitor: dez segundos para um rápido exercício. Pense em algumas pessoas ricas. Em atores ou atrizes de novela.
Tempo… ok!
Quantos negros vieram à sua mente? Quantos você vê diariamente em posições de poder, à frente de grandes empresas, dirigindo carros importados, ocupando ministérios ou secretarias?
A arte imita a vida ou a vida imita a arte? Esse dilema tem um ponto comum: a posição que o negro ocupou e ocupa nos espaços sociais. Assim como no cinema e na teledramaturgia, os papéis reservados às pessoas negras são, em sua maioria, secundários: o motorista, a faxineira, o mordomo, o ladrão.
Até quando o “este lugar não te pertence”, enraizado em um Brasil escravocrata, seguirá ecoando de forma cínica em nossos dias? O açoite que outrora se dava no estalo do chicote, hoje se manifesta no olhar, no comportamento e na atitude.
Dessa forma, seguimos cultuando uma cultura na qual o negro – o preto, o “macaco” –, figura apenas como a “Jane”, fiel companheira do Tarzan, como dito no comentário descabido daquele que comanda o futebol sul-americano.
⸻
*Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras, Maranhense de Letras Jurídicas, ALMA – Academia Literária do Maranhão e AMCAL – Academia Matinhense de Ciências, Artes e Letras.