*Por Osmar Gomes dos Santos
Horas a fio de uma chuva que não passa. Um contínuo período de precipitação e uma quantidade de água que há muito não se via. Apenas chove. Um, dois, três dias seguidos. Os alertas são emitidos. Apenas chove. Cabe ao bom nordestino elevar seu pensamento a Deus, ou quem sabe ao “Padim Ciço”.
Sem ter para onde ir, o único abrigo de milhares é justamente o lugar que agora traz mais perigo: seu próprio lar. Uma armadilha edificada sobre encostas, na beira de morros ou rios. Lá fora, a chuva torrencial segue, intensa. Defesa civil emite alertas, mas nenhuma providência é adotada.
A saturação da encosta chega ao ponto máximo, já não tem mais como segurar. Pedras, árvores, água, lama, casas. Tudo vem abaixo em mais um deslizamento, desta vez somado ao alagamento de bairros inteiros. Parte da região metropolitana do Recife agoniza.
Um dos grandes desafios de nós, escritores, é falarmos sobre as tragédias humanas. E escrever crônicas fatalmente nos leva a contar situações cotidianas das quais não gostaríamos de abordar, mas que é preciso sim falar do problema.
Minha mãe sempre dizia que não adiantava chorar pelo leite derramado. Neste caso, o choro é por vidas perdidas, pelo menos 128 histórias, com idades diversas, que se perdem em meio ao mar de lama. A lamúria é o único alento para dezenas de famílias.
Sobre o leite derramado, infelizmente estamos nos acostumando a uma cultura reativa, deixando para agir sempre após os acontecimentos. Cristalizamos uma cultura reação em detrimento da prevenção e estamos pagando um preço alto por essa escolha.
A desatenção e o descaso continuam a fazer vítimas fatais e, ao que parece, com uma frequência cada vez maior. Vítimas que se vão, enlutam familiares e amigo e deixam um vazio eterno, que nada poderá preencher.
Há perguntas que não calam em todas essas tragédias urbanas. Por que essas pessoas estão a ocupar áreas de risco, muitas delas há décadas? Por que nada foi feito para evitar que ocupações, muitas delas irregulares, se consolidassem? Cadê os programas habitacionais há muito prometidos de norte a sul em um país?
Face à ausência de políticas públicas eficientes, que contemple toda a dimensão da moradia, direito constitucional assegurado, essas tragédias vão se repetindo dentro de um enredo que não combina com nosso país rico, mudando apenas de cenário.
Convém lembrar estamos diante de uma acelerada alteração nos fatores ambientais do planeta. Associado a isso, uma precária infraestrutura de moradia e a escassez de políticas que garantam soluções para as áreas urbanas.
É dentro desse contexto que as lideranças de nosso país precisam focar suas energias. A solução para essas áreas não pode ser apenas a da bala, fundada em uma política de segurança que não responde aos anseios sociais.
Como escritor, vez por outra, gosto de escrever sobre literatura, amor, paixão. Transcender o plano concreto rumo a um imaginário que toca a alma e transborda de sentimentos. Mas acredito que, por outro lado, temos, também, um importante papel de provocar debates públicos.
Há momentos em que a realidade precisa ser trazida à tona, exposta, ainda que seja aquela face mais cruel e que nos toca a todos. Pensei em vários temas para trazer esta semana, mas diante da dor, do choro, do desespero, não tinha ambiente para tratar outro assunto.
Assim como os avisos de perigo que enunciaram a iminente tragédia, esta crônica se propõe, também, como um chamado de atenção para toda sociedade. Não ignoremos os alertas.
*Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís. Escritor; Cronista; Poeta. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.