Tudo já começa no saguão, próximo ao portão de embarque. O anúncio é em alto e bom som e as orientações claras: primeiro os passageiros prioritários por lei.
Após prioridades legais, os que participam de algum programa de relacionamento e depois os demais passageiros. Grupos, conjunto de cadeiras por numeração, ordem assento, a depender da companhia aérea.
Mesmo diante de toda tentativa, é quase impossível conter o efeito manada gerado pela simples chamada: “atenção passageiros do voo xyz”. A bagunça está formada, filas desorganizadas e trabalho para os operadores do serviço.
A impressão que passa é a de que ninguém tem espaço garantido e precisam disputar “na marra” o assento. Parece que a passagem e o número da poltrona serão disputados ali, naquele exato momento. É preciso ser rápido, passar a frente do máximo de pessoas possível.
Para os que cumprem as regras, o desafio continua depois da entrada na aeronave. “Senhores passageiros, solicitamos que mochilas e bolsas de mão sejam acomodadas abaixo da poltrona a sua frente. Nos compartimentos de bagagem, apenas malas dentro das dimensões permitidas”.
Tudo em vão. Palavras ao vento. Como dizia minha mãe ao puxar nossa orelha: entra em um ouvido e sai pelo outro. Sacolas, mochilas, bolsas são itens presentes nos compartimentos de bagagem. Mesmo os comissários ali presentes, orientando a todos como proceder, não faz efeito algum. São categoricamente ignorados.
Um cidadão com sua esposa, que chegaram já perto do fim do embarque, não encontram lugar para colocar sua mala de mão, que parecia estar dentro das dimensões. O comissário os abordou e informou que precisariam despachar as malas, pois já não havia lugares nos compartimentos internos, já cheios de bolsas e mochilas.
Desligar aparelhos eletrônicos, colocar o cinto, retornar o encosto da cadeira à posição inicial são algumas das outras orientações parece que passados ao vazio. Ao se aproximar do pouso e após pousar, ainda quando a aeronave está taxiando, novamente esses anúncios são ignorados.
Engraçado é estar ali, sentado entre algumas poltronas e ouvir alguns se arriscarem a debates políticos. Profundos conhecedores de política, dos problemas do Brasil. Críticos da corrupção, do jeitinho brasileiro, detentores das soluções, como se fossem óbvias.
Falam deste, criticam aquele, concordam em algo, discordam em outro. O tema versa para o comportamento ético de nossos representantes e ambos parecem defender a mesma linha reta da moralidade.
No discurso, a retórica da coletividade, de um país mais justo e igualitário. Na prática, cidadãos que são incapazes de respeitar simples regras da aviação para o bem e segurança de todos a bordo. Negam o bom-senso, a generosidade, a educação. Na hora “H”, se a farinha é pouca…
A única mudança, esta imposta pela pandemia, é que todos passaram a aguardar sentados a autorização para levantar e retirar seus pertences dos bagageiros. Lembro de quando o avião tocava o solo e já ouvia cintos sendo desatados e compartimento de bagagens sendo abertos. Fora essa mudança, tudo segue na mesma.
Essa análise dos comportamentos, que fiz em uma viagem recente, revela muito de uma cultura que ainda persiste em nosso país. O certo ou o errado, o pode ou não pode, parece, para muitos, mudar conforme a conveniência.
Símbolo da austeridade moral, aponto o dedo para o erro alheio. Mas na primeira oportunidade, pratico atos similares aos que outrora condenei. Meu pecado é sempre menor, um pecadinho. E vamos construindo a nação sobre uma estrutura ética incerta e cambaleante.
Em alguns momentos, parece termos colocado a nossa educação em modo avião. Totalmente alheios ao próximo, aos interesses coletivos, dentro dos quais devo me portar não apenas como detentor de direitos, mas cumprido de deveres.
Fazendo um paralelo com as eleições, importante reflexão a ser feita sobre a escolha de nossos representantes. Tal como o avião segue rumo aos seu destino, nossas escolhas partem de nossos atos, conscientes ou inconscientes. São elas que apontarão os rumos dos Estados, da nação.Aqui, é preciso avaliar quem realmente tem histórico de defender os interesses dos mais necessitados, dos que trabalham no campo, dos que dormem na rede sob uma casa de palha, dos que trabalham nas fazendas e são tratados como escravos, dos que permanecem, dos que respeitam sua própria dignidade.
*Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.