Não importa qual seja a sua crença na origem da humanidade, se pela ciência ou religião, o certo é que acontecimentos de grandes proporções sempre impactaram sobremaneira a forma como o ser humano apreendeu a lidar com o novo normal.
A decisão de viver em grupos e constituir comunidade mudou a forma como os antepassados passaram a se relacionar uns com os outros. A descoberta do fogo possibilitou alterações na forma de preparar os alimentos, bem como se proteger de outras espécies. Em comunidade, o homem passou a cultivar e criar animais, garantindo reservas e possibilitando que o tempo da caça fosse direcionado a outros afazeres.
Comunidades cresceram, vilas se espalharam e deram origem a grandes cidades. Estudos, tecnologias, formas de organizações políticas garantiram o desenvolvimento do que pode ser chamado de mudanças positivas que possibilitaram o progresso da humanidade. Passando pela descoberta da escrita, as revoluções indústrias, a descoberta da prensa, a difusão de livros até o desenvolvimento da informática e dos transportes.
Mas há, por outro lado, aqueles acontecimentos que geram impactos negativos, deixam marcas profundas na sociedade e mudam a forma como nos relacionamos com o mundo a nossa volta e, naturalmente, com o próximo.
Alguns exemplos, já na era cristã, confirmam que o mundo viu 5 milhões de vidas sucumbirem durante a pandemia que atingiu o Império Romano e ficou conhecida como Praga Antonina, no século II. Essa crise sanitária foi precedida, um século mais tarde, da Praga Cipriana, que, estima-se, levou 5 mil pessoas a óbito por dia em Roma.
Séculos mais tarde, a Peste Bubônica se espalhou rapidamente em razão das péssimas condições sanitárias existentes na Europa nos idos dos anos 1500. Estimativas dão conta de que algo em torno de 100 milhões de vidas foram perdidas.
A Cólera, hoje já não tão estranha aos nossos ouvidos, teve sua primeira epidemia global no século XIX, levando a morte centenas de milhares de pessoas, sucedendo-se em diversos ciclos epidêmicos desde então. Em 2019, no Iêmen, a doença matou em torno de 40 mil pessoas.
Muito comentada em razão do atual contexto epidemiológico, a Gripe Espanhola também levou aproximadamente 50 milhões de pessoas aos túmulos e infectou cerca de um quarto da população do globo, em 1918, no contexto da Primeira Guerra Mundial.
Pouco depois, no período da Segunda Guerra Mundial, o Tifo se espalhou devido às péssimas condições de higiene em alojamentos e campos de concentração. A praga teria vitimado Anne Frank, figura que anos mais tardes ficaria conhecida em todo mundo por causa de seu diário. Na década de 1980 a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) trouxe o medo à população mundial, dizimando mais de 20 milhões de vida.
Em comum, todos esses episódios tiveram impactos profundos na forma como lidamos com o mundo exterior, levando a população a mudanças de hábitos, como o maciço distanciamento e até confinamento social, como forma de evitar a contaminação pelas doenças.
O atual momento que vivemos não é novidade no ciclo civilizatório da humanidade, mas diante do estágio de desenvolvimento que alcançamos com a globalização, combinado com elevado grau do progresso tecnológico, posso arriscar ser um momento ímpar da escala civilizatória, com impactos jamais vistos.
A pandemia da Covid-19 nos pegou a todos com extrema surpresa: viagens, eventos, planos. Tudo cancelado, revisto, adiado. Aprendemos a nos reprogramar, ainda que a contragosto, como mecanismo único para derrotar um mal que já venceu algo em torno de um milhão de vidas e que ainda persiste, enquanto tentamos encontrar uma cura ou alento para o carma vivido.
A Covid-19 vem para provar que a humanidade, assim como foi ao longo da história, se reprograma. Isolamento em massa, medidas sanitárias para conter a propagação, novos hábitos e novas rotinas que impactaram a forma de interagir, de comprar, de produzir.
Até quando vai durar, ainda é uma incógnita. Nem mesmo os mais experientes cientistas da área médica arriscam um palpite preciso. As vacinas, por mais ágil como nunca se viu na história o desenvolvimento de um antídoto, ainda não surtem o efeito esperado e a disponibilidade em larga escala certamente levará algum tempo após a descoberta da cura.
Estudiosos sociais se arriscam em levantar teorias sobre o cenário que se apresentará. Tentativas. Naturalmente, o arcabouço de conhecimento que carregam o outorgam certo protagonismo. Chomsky alerta para confluência de acontecimentos: climáticos, sanitários e conflitos geopolíticos em um cenário turbulento. Isso se nada for feito para reequilibrar a nossa existência no planeta.
Giorgio Agamben, pensador italiano, propõe uma análise sobre o comportamento da sociedade, caso passássemos a olhar o outro como uma ameaça iminente de contaminação. Céticos, como o francês Alain Badiou, acreditam que não haverá grandes mudanças e afirma que não há nada de novo, apenas mais uma ameaça, como fora o HIV e a Sars.
Talvez a pandemia resulte em novo comportamento humano. Passaremos a ser mais solidários ou mais individualistas, permitindo que o medo passe a permear definitivamente as relações afetivas? E a geopolítica se manterá a mesma? Tal como a Europa perdeu poder e sucumbiu após a Segunda Guerra, como se sairão os Estados Unidos? A China pode, enfim, assumir o posto de primeira economia do mundo e, portanto, a nação mais influente?
A palavra de ordem é mudança. Ainda que estejamos ansiosos para a volta da normalidade, não se pode negar que nada será como antes. Devemos colocar sobre a mesa de reflexões nossas condutas, as formas de se relacionar com o meio ambiente e com o próximo. Precisaremos reaprender a viver em um mundo que dá sinais de intolerância da presença humana predatória.
Rompemos a barreira da barbárie, das lutas e guerras pela mera conquista. Suplantamos a teoria da raça pura, ainda que com certo sacrifício, sempre em busca do bem comum. A superação parece estar no DNA da espécie, que, creio eu, reencontrará seu caminho rumo à sobrevivência. Uma coisa é certa: capítulo importante na escala da evolução começa a ser escrito e o tempo se encarregará das respostas.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.