Nessa quinta-feira o Brasil perdeu uma de suas grandes vozes femininas, ironicamente na mesma data em que morrera seu segundo marido, Garrincha, há 39 anos. Mas falar de Elza Soares é ir além do canto, da voz firme, segura, que marcou sua carreira como cantora.
Falar de Elza Soares é exaltar a ousadia, a superação, de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, como bem dito na canção. Não apenas uma voz da música, foi um grito contra a indiferença.
Ainda na primeira metade do século passado, em um Brasil que ainda não encontrava um rumo enquanto nação, Elza foi entregue pelo pai aos 12 anos para se casar. Conta-se que para salvar a honra da menina, uma vez que o tal noivo teria tentado dela abusar. Desse casamento, trouxe o sobrenome Soares.
Teve filhos ainda cedo, o primeiro aos 13 anos. Com o marido doente, precisou trabalhar, exercendo ofícios como de encaixotadora e conferente. Com a recuperação do marido, foi proibida de trabalhar e voltou a ser dona de casa.
O relacionamento foi sempre conturbado, devido violências sofridas dentro de casa. A isso, somava-se a dor materna com a qual aprendeu a lidar desde muito jovem, com a perda do segundo filho – conforme relatos, de fome –, o sequestro de uma filha, além das dificuldades de garantir uma vida digna para a família.
Ficou viúva aos 21 anos e decidiu seguir seu dom de cantar, profissão que era impedida pelo marido. Naquela altura da vida, Elza já tinha perdido dois filhos e para salvar seu outro menino, decidiu apostar em um show de calouros que renderia um bom prêmio.
Bateu às portas da Rádio Tupi para cantar no programa de calouros Nota 5, apresentado pelo icônico Ary Barroso, já famoso apresentador. A plateia sorriu quando ela entrou e se sentou – vestido da mãe, ajustado com alfinetes. Ao ser chamada ao palco, Ary perguntou de forma cômica: “De que planeta você veio?”
Mas aquela quase menina, já mulher feita, cuja vida já lhe rendera bons ensinamentos, não poderia ter uma resposta mais adequada. A devolutiva não poderia ser outra: “Do mesmo planeta que o senhor, Seu Ary. Do planeta fome”.
A plateia se calou, Elza soltou a voz, levou a nota máxima e o tão almejado prêmio. Ary Barroso prenunciou o nascimento de uma estrela, mal sabia ele que tinha riscado um fósforo na calda de um cometa que atravessou o século XX e chegou ao XXI com seu brilho ainda incandescente. O filho sobreviveu.
Elza participou de festivais, viajou o mundo, fez parcerias, ganhou prêmios. Chegou a ser eleita pela Rádio BBC de Londres como a cantora brasileira do milênio, além de figurar na lista das 100 maiores vozes do país.
A propósito, a resposta dada ao saudoso Ary Barros, Planeta de Fome, foi título do 34º álbum da cantora, lançado em 2019, retratando as dores de um Brasil que vive às margens. Quem diria que a moça de favela, de família de dez irmãos, criada em um cortiço, seria um expoente.
Elza Soares é uma referência não apenas na música, mas na luta contra o preconceito racial, tendo várias canções abordando o tema. A regravação de A Carne, que traz para o centro do debate o negro que ajudou a construir a história e que ainda segura o país nos braços, rendeu elogios da crítica e reacendeu o debate sobre o racismo estrutural.
Sua história como mulher a credenciou para ser uma voz pela independência e o fim da violência da mulher. Também inseriu esse tema em diversas canções, a exemplo de Maria da Vila Matilde.
Ao se casar pela segunda vez, viveu outra relação um tanto quanto conturbada, agora com o craque das pernas tortas e um dos maiores de todos os tempos, Garrincha, com quem conviveu por 17 anos e teve um filho, morto aos 9 anos em um acidente de carro.
Elza superou dificuldades, acertou, cometeu erros, viveu polêmicas, altos e baixos, foi atacada, sofreu ameaças. Mas como diz o samba: deu a volta por cima. Entrou o século XXI renovada e radiante. Por tudo que passou, é um livro, uma disciplina, uma lição de vida.
A cantora só não resistiu ao tempo e assim como o fim derradeiro de todos nós, encontrou o conforto eterno após deixar este palco por causas naturais. Partiu de cabeça erguida, lúcida, cultivando até os últimos dias os cuidados com a saúde e a beleza.
Por tudo que nos deixou, Elza Soares continuará sendo o lugar de fala das mulheres por respeito, igualdade e independência. Será sempre o símbolo da luta contra as desigualdades, o preconceito e o racismo. E a certeza de que é possível vencer as adversidades.
Os 70 anos de carreira certamente não se encerraram nesta fatídica quinta-feira (20). Ela permanecerá, para sempre, como dizia a letra de uma das suas canções de sucesso: “Na avenida, deixei lá, a pele preta e a minha voz; Na avenida, deixei lá, A minha fala, minha opinião; A minha casa, minha solidão. Mulher do fim do mundo, Eu sou, eu vou até o fim cantar”.
Osmar Gomes dos Santos. Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.