A palavra energúmeno encontra alguns significados em nossa Língua Portuguesa, alguns, inclusive, bem diferentes de outros e geralmente empregado com conotação pejorativa. Algumas delas são traduzidas como aquele possuído pelo demônio; desnorteado; aquele que comete desatinos em razão de uma paixão; ou, ainda, aquele desprovido de inteligência, ignorante.
Seja qual for a definição, dentre os vários sinônimos para o vocábulo, ela se encontra anos-luz da grandiosidade que foi o pensador Paulo Reglus Neves Freire, mesmo para seus críticos. Chamado de energúmeno pelo presidente Jair Bolsonaro essa semana, a declaração atraiu a atenção e deixou estupefatas personalidades do Brasil e de parte do mundo, em razão do legado deixado por Freire.
Muito refleti antes de decidir tratar sobre o ocorrido, que me causou enorme espanto. Ensaiei algumas linhas: uma, duas, três vezes. Titubeei. Retrocedi. Mas havia algo, em meu âmago, que me incomodava profundamente. Tomei novamente o lápis e me pus a traçar alguns rascunhos sobre esse grande mestre da educação.
Paulo Freire fez história e ganhou reconhecimento internacional em um momento em que o Brasil era lembrado pelo seu futebol e pelo seu carnaval. Destacar-se em razão de causas nobres e na defesa de temas sociais era algo para inglês ver. Mas Freire, oriundo de família humilde, venceu limites e ultrapassou fronteiras para levar a sua pedagogia ao mundo.
Freire trabalhava a educação dentro de uma perspectiva transformadora a partir da realidade de cada educando em uma permanente troca de experiências, em um debate crítico capaz de produzir efeitos positivos sobre o cotidiano. Via na educação a mola propulsora do desenvolvimento nacional, razão pela qual se tornou referência para pensadores de diversas linhas, embora fosse alinhado ao pensamento de esquerda.
Ademais, importante ressaltar, que posições políticas não definem o caráter ou a competência das pessoas, haja vista que a política é uma ferramenta por meio da qual a sociedade evolui. Essa linha adotada o levou a ajudar na fundação o Partido dos Trabalhadores, algo perfeitamente compreensível para quem passou pela ditadura de Vargas e, naquele momento, acabara de romper com um regime do qual teve que se exiliar por anos fora de seu país.
Ressalta-se que, naquele contexto, todos poderiam ser considerados de esquerda, ao passo que se contrapunham ao modelo de governo que encerrava um ciclo de opressão.
Mas Paulo Freire está acima dessas questões. Educador, filósofo, pedagogo, pensador. Doutor Honoris Causa em diversas instituições de ensino superior pelo mundo, dentre elas as respeitadíssimas Havard e Cambridge. Teve obras traduzidas em dezenas de países e foi aplaudido mundo afora.
Uma regra de etiqueta social, que consiste em bom senso nas relações humanas, nos diz que quando não soubermos o que falar, melhor ficar calado. Mais uma vez é levantado um debate vazio que em nada soma ao país.
Freire merece ser debatido? Sim! Não restam dúvidas de que devemos sim dialogar sobre os ensinamentos deixados por ele e por tantos outros pensadores brasileiros. Alguns já nos deixaram, outros estão aí. Todavia, suas obras são atemporais e merecem reflexão em um nível elevado do debate. Criticar é válido, concordar ou não faz parte, mas o respeito à obra e à pessoa deve prevalecer. Se acredita que algo está errado, proponha-se a corrigir com ações concretas.
Em recente leitura da obra “Engenheiros do caos”, do italiano Giuliano Da Empoli, é possível constatar um perigoso movimento de lideranças políticas mais alinhados à extrema direita. Deficiências são apresentadas como qualidades, daqueles que “blasfemam” qualquer coisa e ainda são rotulados de originais, que falam o que pensam e, assim, rompem o círculo da “velha política”. Disparam fake news ou notícias de efeito que são exaustivamente reproduzidas por seguidores, notadamente em redes sociais, o que reforça uma tal liberdade de pensamento.
Tentam chamar atenção da plateia para sua própria ignorância. Criam um enredo de gafes e polêmicas com frases de efeito, ao que parece, propositalmente construídas para desvirtuar o debate sério que a nação merece. Resultado de uma investigação ampla, Giuliano busca demonstrar que, por trás dessas aparentes “caneladas”, há um articulado sistema de bigdata para converter algorítimos em outra coisa.
Trago o exemplo do saudoso Nelson Mandela. Mesmo após anos de cárcere, em razão de sua cor e de perseguição política, aquele negro, de semblante sereno, lutou para unificar a África do Sul entre brancos e negros. Não atacou, não revidou, não se vingou. Governou sem ódio, com amigos e ex-inimigos, consolidou uma África do Sul forte perante o mundo e deixou um exemplo de liderança para toda humanidade.
Prometi não baixar o nível do debate e espero ter alcançado tal propósito. Não serei mais um a corroborar com a institucionalização da ignorância que apenas bestializam debates importantes em nossa nação.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.