Foram pelo menos seis os “considerandos” que falsamente fundamentaram aquele trágico documento que personificou um dos mais bárbaros episódios de nossa história. Se, naquela época, nada, absolutamente nada, justificava a instauração de um comando tão bárbaro para subjugar a nação, pode-se afirmar ser ainda menos aceitável, em tempos de madura democracia, ousar falar em retomada daquele triste capítulo.
Eis que aquele que se julgava arauto da moralidade e possuidor de todas as qualificações para exercer cargo de tamanha responsabilidade na representação do Brasil frente a mais poderosa nação do planeta, cometeu uma conduta “um pouco infeliz”, segundo sua própria definição ao vislumbrar uma reedição do Ato Institucional nº. 5. Eduardo Bolsonaro confirma não apenas o despreparo para aludido cargo, como também para exercer a representação.
“… a gente vai precisar ter uma resposta e uma resposta pode ser via um novo AI-5”. Uma declaração dessa, vinda de um parlamentar eleito pelo sufrágio universal, deve ser rechaçada veementemente. Principalmente por se tratar de um momento em que o Brasil vive o ápice de sua democracia, fato comprovado pelo resultado do último pleito eleitoral.
O conhecido AI-5, então sugerido pelo deputado como uma alternativa para “parar” a esquerda, soou tão mal que até o próprio presidente da República, notadamente defensor de práticas pouco democráticas e daquele regime, criticou a fala. Ex-presidentes, autoridades e representantes de todos os setores da sociedade civil reagiram e fez acender definitivamente o sinal de alerta para o que está em jogo no cenário atual.
Em suma, com destaque para os mais jovens, o AI-5 foi a institucionalização do terror nos tempos de ditadura vividos de 1964 a 1985. O ano era 1968, durante o governo do general Costa e Silva. A medida foi a quinta de dezessete outros decretos presidenciais que regulavam a sociedade durante o regime e que não podiam, sequer, serem revistos pelo Poder Judiciário.
Sob o pano de fundo de uma completa desordem nacional, o ato possibilitou a concretização da face mais perversa daquele modelo de governo. Instaurou um regime de exceção que dava infinitos poderes ao presidente para interferir diretamente nos demais poderes conforme sua inteira e particular conveniência.
O AI-5, comprovadamente, inaugurou um aparelho de tortura institucional que deixou centenas de órfãos, arrancou filhos de suas famílias, país de família de seus lares e “expatriou” ao exílio centenas de nacionais. Deixou um rastro de sangue e atrocidades de norte a sul do país. Logo após sua edição, assembleias legislativas e o Congresso foram fechados de forma sumária com uma única canetada.
Políticos de oposição e todas as demais categorias de servidores públicos que não seguiam na toada pretendida eram considerados subversivos e, além da perda do cargo, tinham suas vidas devassadas. O habeas corpus, remédio constitucional fundamental para garantia da liberdade, teve seus efeitos suspensos. A censura chegou às artes e às publicações audiovisuais.
Apesar de toda barbárie, é fato que não podemos, jamais, esquecer o AI-5. É uma página da história que nunca deve ser virada, mas revisitada diariamente quando abrimos a boca para expressar nossas opiniões, quando nos reunimos ordeiramente para protestar, quando ousamos tecer críticas àqueles que nos governam, ou simplesmente quando decidimos bater perna sem qualquer rumo. O AI-5 deve ser lembrado a todo instante em que exercitamos direitos outrora roubados de nós.
Ao se analisar a morte da democracia nos dias atuais, o que se coloca em foco é justamente a interferência de um poder sobre o outro, gerando crises no sistema de freios e contrapesos na teoria tripartite de Montesquieu. Por isso, ainda mais inaceitável que um representante do Congresso, uma das instituições que mais sofreram com o regime militar, se posicione de tal maneira.
A esquerda, a direita, a sociedade civil, os grupos minoritários, políticos, operários, servidores e os mais diversos segmentos sociais jamais deverão se calar diante daquilo com que não concorda. A fala não pode encontrar ressonância alguma na sociedade, visto que a crítica aberta, o debate livre e o direito de manifestação constituem a essência da nossa democracia.
Sobrevivemos àquele fatídico episódio, como diz a letra da música de Chico Buarque. “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Eu pergunto a você: onde vai se esconder da enorme euforia? Como vai proibir quando o galo insistir em cantar? E eu vou morrer de rir, que esse dia há de vir antes do que você pensa”.
Nenhum ato mais será imposto. Não se pode admitir um novo regime das armas, da intimidação e do medo. O galo cantou, o povo bradou. Milhões nas ruas, muitos deles mártires da liberdade, puseram fim a um regime de exceção. Devemos manter acesa essa fagulha da esperança chamada de democracia, cuja marca é a pluralidade de ideias, de crenças e de raças, sendo o respeito ao próximo a espinha dorsal e ponto moderador de nossas condutas. E PONTO FINAL.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.