Abril é mês de nascimento de Aluísio Azevedo, escritor maranhense dos mais destacados na literatura brasileira. Por essa razão, guardei um punhado de palavras e uma folha em branco para rememorar um pouco de uma de suas mais importantes obras: O Cortiço.
O cenário é o Rio de Janeiro, tendo como pano de fundo um cortiço – tipo de moradia de precárias condições estruturais. O ano, 1890, marca o fim da submissão do Brasil a Portugal e início do modelo republicano de governo. O fim da escravidão gera enorme demanda de mão-de-obra para o novo modelo de produção capitalista.
Neste novo contexto, ou se tinha algum tipo de ofício especializado – algo raro para a época –, ou se submetia ao trabalho exaustivo em troca de alguns poucos réis. A segunda alternativa era a mais comum para a massa de pessoas desocupadas, que agora precisam trabalhar para se sustentar.
Menos qualificação era sinônimo de salário menor, o que mal dava para manter as necessidades básicas. Moradia era artigo de luxo e felizardos eram aqueles que ainda conseguiam um canto em algum cortiço para uma noite de descanso. As instalações precárias eram o único espaço de morada voltado para aqueles com parcos recursos.
Neste mosaico social se passa uma das mais importantes obras do movimento naturalista. Uma vida marginal, cheia de malandragem, vícios, traições, ganância, cheia de perspectivas prostituídas pela falta de oportunidades e vazia de esperanças por uma sobrevivência digna.
As duas figuras centrais na trama, além do próprio cortiço, são o comendador Miranda e João Romão. Este último, um pequeno comerciante que a duras penas – e uma boa dose de ganância e desonestidade – cresce na vida. O primeiro, um afortunado, homem de posses, embora as mesmas tenham sido conquistadas junto com o matrimônio.
Romão possuía uma pedreira, uma quitanda e um cortiço. Fixou-se na ideia de enriquecer e para isso trabalhava duro. Movimentava parte de sua riqueza a partir do trabalho que oferecia – uma parcela de seus empregados eram também clientes da quitanda e inquilinos do cortiço. Já Miranda, além do dinheiro, possuía um sobrado, frequentado por pessoas letradas e de nível cultural mais elevado.
Havia uma rivalidade entre ambos, que só acabara após uma trama bem articulada de Romão para se casar com a filha do comendador, Zulmira. Romão ascende socialmente, torna-se barão, seu cortiço passa por um processo de modernização e se transforma em Edifício São Romão, habitado por pessoas de melhores condições financeiras.
Outros, porém, seguindo seu carma social, vão para outro cortiço, chamado de Cabeça de Gato. Lá insistem em reproduzir todas as desventuras e devaneios de uma vida desregrada. Em síntese é esse o desenrolar da história.
No entanto, nas entrelinhas é que está a essência da obra. O Cortiço mostra o abismo social que existe entre dois mundos de uma mesma sociedade, o que por si só se torna atualíssimo para nossos dias. A casa grande e a senzala, o cortiço e o sobrado, o morro e o asfalto, a comunidade e os bairros nobres. A dicotomia social ao mesmo tempo encravada e escancarada em nossa história.
A cruel realidade retratada nos aglomerados urbanos do fim do século XIX, notadamente na Cidade Maravilhosa, está presente hoje, se não em todas, pelo menos na maioria das cidades e metrópoles brasileiras.
Não se pretende desmerecer quem ocupa essas áreas menos abastadas, mas apenas alertar para o fato de que em um país gerador de tantas riquezas, a classe pobre foi relegada à própria sorte. Alguns ascenderam socialmente, como João Romão, outros milhões continuam a reproduzir a luta diária pela sobrevivência e outra parcela significativa está às margens da lei e da ordem.
Assim, a vida no cortiço segue, dia após dia. Alegrias, tristezas, negociatas, paixões, traições, malandragem, prostituição, gente decente, outras nem tanto. Um mundo paralelo, no qual ainda predomina a lei do mais forte. Para sobreviver, é preciso matar um leão por dia.
O cortiço é de uma fase mais séria de Aluísio Azevedo, cunhado em uma crítica social onde mostra a essência humana em suas vicissitudes, escancarando seus medos, fragilidades, instintos, vícios, defeitos. Passa a ideia de que sempre existirá o abismo da desigualdade entre ricos e pobres, como um ciclo vicioso que não tem fim.
Azevedo segue a tese naturalista e tenta confirmar que o homem é resultado do meio social, da hereditariedade e do contexto histórico. Reforça ideias deterministas que predominam na época, configurado na ordem e progresso de nosso maior símbolo nacional.
É uma obra mais que atual e merece toda nossa atenção. Por mais que se tente combater algumas dessas ideias, ao estabelecer paralelos entre a realidade de outrora e a nossa pode ajudar a compreender o funcionamento de nosso amálgama social.
Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís; Membro das Academias Ludovicense de Letras, Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.