*Por Osmar Gomes dos Santos
Sou um mero gaiato, que na corrida pela vida chegou na frente de milhões. Meses depois, lá estava aquele ser frágil, dependente, inseguro, franzino. Certo é que cá cheguei, em um tempo e espaço qualquer, que decidimos em dado momento demarcar.
Como um sopro na linha do tempo que não se sabe quando iniciou, tampouco onde alcançará. Sigo de passageiro, tomando mera carona nessa coisa que denominamos de vida, palavra de rica semântica, criada por nós para fazer emergir significados dos mais diversos.
Aprendi desde cedo que escolhas mudam rumos e que tal passagem pode ser mero acaso do destino ou que por ela podemos adotar certos percalços para um bem viver. De uma forma ou de outra, seguimos como passageiros desse trem-bala chamado vida.
Tomando este trem, passei por muitos lugares, estação por estação. Alguns desses lugares pude escolher, depois de homem feito; outros, no entanto, fui levado a mudar pelas forças circunstanciais de uma vida sofrida na roça e das desventuras mundanas, que levou meu amado pai.
Na primeira estação, recordo-me dos pés descalços, da roupinha simples, da casinha de taipa sem energia elétrica. Mas uma fase boa, de sorrisos sinceros, das gargalhadas em volta da fogueira, da família à mesa para dividir com alegria o pouco que havia para muitos.
Mas o trem segue seu rumo e leva-me à estação das luzes da Rampa Campos Melo, ao aportar sob chuva fina na capital São Luís. Sob palafitas, fiz amizades, trabalhei duro e edifiquei uma base firme sob muito estudo. Essa base me possibilitou um bilhete para a estação seguinte.
Eis a estação das oportunidades profissionais, da busca pela tão sonhada estabilidade. Nesta etapa, já não tive dúvidas que todo esforço valera a pena e que era chegado o momento de colher os bons frutos. Eis que chegam novas responsabilidades e não posso ficar aqui parado.
Rumo para a fase das noites mal dormidas, dos choros e trocas de fraldas. Ao mesmo tempo o encantamento pelo maior patrimônio que pude juntar ao longo das estações: a família. Sorrisos, abraços, cumplicidade, companheirismo, amar, amar e amar. Mas os pequeninos crescem e decidem buscar seus próprios vagões.
Seguimos juntos na jornada. A família cresce, chegam os netos, voltam a se reunir os irmãos, que se somam àqueles que assim aprendemos chamar. Décadas de ternura, doçura, sabedoria, generosidade. E olho para ela com coração pulsante, com o mesmo “primeiro olhar”.
Hora de rumar para outra estação. Chegando cá algumas mudanças não esperadas. Aquele sorriso, que me acompanhou por tantas jornadas, já não está aqui. Décadas passaram com a mesma velocidade da paisagem lá fora, vista pela janela. Pensamos saber lidar com o inexorável, mas descobrimos que ele é sinônimo de si mesmo.
A sirene ecoou e mais uma vez é hora de zarpar. Tomo meu assento, de onde já vejo aqueles quase adolescentes, com as mesmas inquietações que eu tivera algumas estações atrás. Um olhar mais aguçado e vejo que se trata dos meus netos, agora já crescidos.
Passa um filme neste momento sobre todas as estações. Volto o olhar para dentro de mim, dando-me conta de que já não regressarei a nenhuma delas. Fiz bons e verdadeiros amigos, tive bons mestres, gozei de uma boa juventude. Amei, casei, eu construi.
Sinto o trem desacelerar e já me pergunto se em razão de uma próxima parada ou se o fim da minha jornada. Penso ter dado o melhor de mim ao longo dessa viagem, mas juiz que sou, dou-me por impedido para julgar a mim mesmo.
Não sei o que me espera após a próxima sirene ecoar. Sinto como se tivesse a vida esvaindo-se em minhas mãos, aparentemente de forma lenta, mas com a mesma rapidez que enxergo o instante pueril que é a presente viagem na escala infinita de tempo e espaço, para além da nossa compreensão.
Já não com o mesmo vigor e a voz um tanto frágil, depois de tantos quilômetros percorridos, ouso dizer aos mais jovens: esta linha pode ser infinita, mas as nossas estações logo chegam ao fim. Pessoas vem e vão, tal qual entram e saem de nossas vidas. Até que, em algum momento, somos nós que já não estamos nas vidas delas.
Juiz de Direito da Comarca da Ilha de São Luís.Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.